Sinopse:
Humanização e saúde mental – Cuidado humanizado é cuidado em liberdade
Este quinto volume dos cadernos temáticos da Política Nacional de Humanização (PNH) dedica-se à sistematização das experiências e dos debates que a Reforma Psiquiátrica (RP), em curso no País, vem produzindo. Para todos que vêm acompanhando o crescimento, vivendo os tropeços e empreendendo seus esforços pela consolidação do SUS em nosso país,
essa produção se reveste de especial significado.
Alcançamos o primeiro quarto de século da mais complexa, ousada e desafiadora política de saúde que o Brasil já construiu, talvez com uma única certeza: a de que, se ainda não garantimos um SUS resolutivo, equânime e humanizado, temos sim, um longo e robusto percurso de construção de um sistema público de saúde que já não comporta silenciosamente formas de cuidar excludentes, nem saberes e poderes absolutizantes, como os que marcaram a vida de milhares de pessoas nos mais de 200 anos de história
dos manicômios.
A melhoria no acesso e na qualidade na atenção em saúde mental em uma Rede de Atenção Psicossocial encontra-se, certamente, entre os maiores desafios que este sistema ainda tem por enfrentar na perspectiva de cumprir sua finalidade de garantir serviç os de saúde com qualidade, atendimento integral, inclusivo a todo cidadão brasileiro. Se este debate pode ser colocado nesses termos e tomar espaço nos serviços, eventos científicos, publicações como esta – que marca os 10 anos de percurso da Política Nacional de Humanização – é porque temos na convergência dos processos da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica posições éticas, estéticas e políticas muito caras ao projeto de uma sociedade mais justa, cujos resultados, ainda que lentos, começam a ser percebidos. Mais que dois processos coletivos paralelos em um campo temático aproximado, as Reformas Sanitária e Psiquiátrica são mutuamente potencializadoras e eticamente equivalentes, quando entendidas em suas radicalidades utópicas, sustentadas até hoje, em grande parte, mesmo passados mais de 20 anos de suas institucionalizações. Ao afirmar, no artigo que abre esta coletânea, que PNH e saúde mental “são apostas que se constroem nas bordas e [fissuras de um] cotidiano conservador”, Sílvio Yasui reforça tal compreensão e aponta a perspectiva político-metodológica que vai marcar os escritos que o seguem.
Significa dizer – correndo o risco de estarmos enunciando o óbvio – que a luta por um atendimento em saúde resolutivo, integral e humanizado para a população que padece de sofrimento psíquico passa pelo reconhecimento desses sujeitos como cidadãos que gozam do direito de buscar ajuda quando avaliarem necessário, de dispor de uma rede de atenção com diferentes serviços a serem acessados em diferentes circunstâncias de suas vidas. Enfim, que não tenham seus destinos selados por um diagnóstico que os atrele indelevelmente a um modo de “tratar” pautado no isolamento manicomial e no cuidado tutelar.
Em outras palavras, estamos dizendo – e, com isso, reafirmando a tautologia anunciadano subtítulo destes cadernos – que só faz sentido falarmos em humanização do cuidado em saúde mental se estivermos tratando de sujeitos livres, pelo menos na forma como a Política Nacional de Humanização compreende e define a humanização – como efeito concreto de relações entre sujeitos e coletivos, cujos encontros, diferenças, paixões e desavenças os tornam mais potentes, mais sensíveis às necessidades uns dos outros e mais
dispostos a novos encontros.
Os escritos que compõem este caderno temático apontam nessa direção. São reflexões retiradas do campo da saúde mental que, em seu conjunto, defendem na radicalidade o cuidado com a vida. Mas a vida que não se apresenta de uma só forma, nem cabe em uma só pessoa, a vida entendida em sua multiplicidade trágica, entre dores e delícias, altos e baixos e que pede acolhida nas mais diversas circunstâncias, nem sempre harmônicas, nem sempre como nossos serviços e normas institucionais gostariam que ela se apresentasse.
Os textos que fazem esses debates foram agrupados em 4 diferentes sessões: são 13 artigos, 5 relatos de pesquisas, 10 experiências em debate e 4 reportagens. No conjunto, a par da diversidade regional, pluralidade de lócus institucionais e mesmo perspectivas teóricas entre os autores, uma mesma diretriz: a afirmação de que humanização, no campo da saúde mental, significa fazer avançar princípios e estratégias da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Isso não os impede de reconhecer os impasses que o SUS tem a superar, ou a distância que pode existir entre o tipo de atenção preconizado pela política nacional de saúde mental e o efetivamente encontrado pelos usuários nos serviços de saúde. Ao contrário, é justamente no reconhecimento da magnitude desses desafios que se busca subsídios, no âmbito da saúde coletiva, para qualificar o cuidado em saúde mental.
Mas é também pelo comprometimento com a busca de soluções e alternativas que entendemos pertinente pensar em que sentido os aportes da PNH oferecem contribuições às atuais especificidades do campo da saúde mental. Os autores aqui reunidos se dispuseram a compartilhar os dilemas, as análises e as experimentações que o complexo campo de cruzamento das várias políticas públicas vem produzindo.
Ainda que tenhamos muito a aprender sobre o que nos humaniza, os textos deste volume nos revelam o quanto já temos para contar acerca de outras formas de lidar com esta experiência demasiada humana que é a loucura