Basta um conceito e cria-se um novo mundo. Do contrário, não haveria tanta energia investida em pensamento e tanta, também, para se tentar obstruí-lo. O nascimento de uma ciência é o oposto do que sabemos sobre a morte das estrelas. Enquanto estas podem exibir brilho cuja origem se extinguiu faz muitos anos, aquela, quando assoma à superfície, é erupção de movimentos tramados em silêncio. Tanto mais quando falamos da epidemiologia, seus micro-organismos e mapeamentos. São os números, dirão os apressados, são os números que dão concretude, peso, vida, movem montanhas de dinheiro público e trabalhos científicos. Mas será que eles nos bastam? Será que algo não nos escapa à ponta do lápis? É preciso auscultar o silêncio, do contrário seremos eco e claque de verdades obsoletas. É para esse silêncio que as pesquisadoras da ENSP Fátima Pivetta e Lenira Zancan voltam seus ouvidos no trabalho Morar em Favela e a determinação social da saúde: reflexões acerca das invisibilidades. A pesquisa, que conta com a coautoria de Marize Bastos da Cunha e Marcelo Firpo, também da ENSP, e Jairo Dias de Freitas, da Escola Politécnica em saúde Joaquim Venâncio, foi apresentada durante o 11° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva realizado em Goiânia.
Mesmo fazendo parte de uma comunicação oral denominada de “Diferenciais”, por trazer pesquisas de difícil classificação, o trabalho se destacou - um diferente entre os diferenciais - sobretudo, pela ausência de tabelas e gráficos. Ironicamente, minutos antes de sua apresentação, Fátima Pivetta ajudara a corrigir alguns números de um jovem pesquisador, que lhe pareceram errados. Na sua fala, porém, a dura realidade de quem vive sob a violência do estado nas favelas cariocas emergiu de relatos, narrativas, histórias. Para falar do invisível, foi necessário que surgisse o volátil conceito de determinantes intangíveis. Foi esse conceito o centro da conversa com Fátima Pivetta e Lenira Zancan, feita depois da apresentação das duas no Abrascão.
Veja, a seguir, os melhores trechos da entrevista.
Informe ENSP: Professora Fátima, o que seriam exatamente esses determinantes intangíveis de que a senhora falou em seu trabalho?
Fátima Pivetta: Essa é uma ideia que a gente está discutindo a partir da nossa pesquisa de PAC/Favelas, da nossa convivência e da metodologia de produção compartilhada, que historicamente adotamos no LTM, o Laboratório Territorial de Manguinhos. Ao longo do nosso trabalho, começamos a identificar nas falas dos moradores relatos sobre fontes de sofrimento e de adoecimento que não apareciam claramente nas correlações que fazíamos com as estatísticas do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria. Foi então que começamos a usar essa categoria, essa noção de invisibilidades e agora começamos a nomear o que seriam essas invisibilidades, a categorizá-las. Trata-se das políticas públicas como fonte de sofrimento. Nem sei se vamos continuar dando esse nome de determinantes intangíveis, mas é, por ora, o que estamos usando para classificar isso que não é tangível pelos números, pelos estudos epidemiológicos, e que aparece somente nas narrativas das pessoas, seja nas oficinas que organizamos ou nos consultórios médicos. Quando conversamos com médicos da atenção básica, eles concordam que essas causas invisíveis são fundamentais no estado de saúde ou como fonte de adoecimentos, mas esses profissionais não têm como fazer um registro delas no banco de dados.
Informe ENSP:Quando se fala de algo invisível, intangível, num estudo sobre saúde, a primeira ideia que nos vem à cabeça é a de que o objetivo do estudo é tornar esse invisível visível. Por outro lado, é interessante que sejam invisíveis no sentido de não serem traduzíveis em números, porque dessa forma consegue-se demonstrar que eles não dão conta de tudo.
Lenira Zancan: Eu acho que é isso que está dentro da ideia de produção compartilhada de conhecimento, porque as ciências, as disciplinas, tem uma racionalidade que não consegue capturar essas complexidades e essas invisibilidades. Por isso que a epidemiologia sem números, do Naomar, e a epidemiologia critica estão buscando uma forma de se expressar cientificamente, mas não de forma tangível, não pelos números.
Fátima Pivetta: São coisas que os mais complexos modelos epidemiológicos, de supercomputadores, não conseguem captar. A epidemiologia trabalha com modelagens, então não consegue enquadrar nelas uma fala de um morador e traduzi-la para que depois vire estatística, vire ciência
Lenira Zancan: Alguns autores que a gente está usando, como o Thompson, trabalham com a categoria de experiência. E a experiência é traduzida por narrativas. As narrativas falam do vivido, do percebido, mas também das condições objetivas em que esse vivido, esse percebido, existem. Então, através das narrativas você também está compreendendo as determinações sociais da saúde.
Fátima Pivetta: Vou dar o exemplo de algo que apareceu como uma morbidade. Quando o PAC começou as remoções em Manguinhos, chegavam de sopetão e diziam para as pessoas que moravam lá há 30, 40 anos, às vezes, até mais, que o serviço social iria passar na semana seguinte e os moradores teriam que optar entre aluguel social, compra ou indenização. O aluguel social era para esperar até que os apartamentos do PAC estivessem prontos e então eles se mudariam. Não sabiam quando. Então, a mãe de uma bolsista nossa, uma pessoa que tem hipertensão e problemas cardíacos, quando recebeu essa notícia, passou uma semana na UPA com problemas no coração. Eu não sei se o médico que tratou dela ficou sabendo que aquele problema vinha em decorrência de um forte impacto emotivo. Um impacto negativo, no caso. E houve os picos de pressão.
Outro exemplo: quando tinha muito tiroteio em Manguinhos, as crianças ficavam em pânico, faziam xixi nas calças. Então, temos que ter um método para olhar para essas situações.
Primeiro, uma ideia, uma utopia, da onde você quer chegar e escolher um método para olhar aquela realidade.
Informe ENSP: E de que maneira vocês acham que o trabalho de vocês pode contribuir para melhorar a vida dessas pessoas?
Lenira Zancan - Essa possibilidade de dar visibilidade, por exemplo, com relação as opções que são dadas as famílias despejadas demonstra que aquela maneira de se fazer política produz um agravo, uma doença. Essa deve ser uma informação que gere uma nova política. Nosso objetivo é esse, dar visibilidade para questionar a forma como a política se faz, muitas vezes carregada da certeza de que está fazendo o bem. Porque os agentes do estado acham que estão dando opções maravilhosas para as pessoas. Para o senso comum, sair da favela é sempre bom, nunca é ruim. E é ruim para as pessoas. Basta não se queira que é ruim.