quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pesquisa analisa as religiões na prevenção da violência e recuperação de pessoas

Isabela Schincariol

Qual o papel da religião na prevenção da violência e na recuperação e reabilitação de pessoas envolvidas com atos ilícitos e como, para isso, as igrejas se relacionam às políticas públicas estatais? Esta foi a pergunta norteadora do trabalho desenvolvido no Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP) pela pesquisadora colaboradora Fernanda Mendes Lages Ribeiro.  
 
A pesquisa, cuja abordagem foi qualitativa, teve como foco o bairro de Manguinhos - formado por um complexo de 13 favelas, localizado na zona norte do Rio de Janeiro -, sede também do principal campus da Fiocruz no Estado. O trabalho parte do princípio que nos bairros de periferia das grandes cidades, as igrejas têm uma atuação religioso-moral e também assistencial que cumpre uma função pública, em diálogo, parceria ou em atrito com as políticas sociais existentes.
 
Fernanda aponta como conclusão de sua pesquisa, que, em relação às políticas de tratamento de dependentes de drogas, cabe cumprir o que já é política pública, isto é, o tratamento nos dispositivos territoriais de saúde mental, em especial os Centros de Atenção Psicossocial - Álcool Drogas (Caps ad). Para ela, cabe ao Estado investir no fortalecimento e expansão dos serviços já preconizados, ao invés de abraçar um projeto terapêutico genérico, baseado em princípios religiosos-morais, terceirizando a atenção às Comunidades Terapêuticas (CTs). 
 
“Compete fortalecer as propostas de tratamento individualizadas, prezando por uma abordagem de cuidado que tenha como princípio o respeito aos sujeitos, a seu direito de escolha e à sua inclusão no processo de restabelecimento da saúde”, defendeu ela. 
 
Este trabalho é fruto da tese de doutorado de Fernanda, intitulada Religião, Prevenção à Violência e Recuperação e Reabilitação de Pessoas: Um Estudo em Manguinhos. O trabalho foi orientado pela pesquisadora da ENSP e coordenadora científica do Claves, Maria Cecília Minayo. Fernanda é graduada em psicologia, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e, recentemente, tornou-se doutora em Ciências na área da Saúde Pública. Confira, abaixo, a entrevista concedida ao Informe ENSP.
 
Informe ENSP: Que caminhos foram percorridos nesta investigação que levou em consideração o papel e funções da religião na prevenção da violência e na recuperação e reabilitação de pessoas, e sua relação com as política públicas?
 
Fernanda Mendes Lages Ribeiro:Este foi um trabalho de abordagem qualitativa, que seguiu etapas de atividade como levantamento das igrejas e das associações religiosas presentes no território; observação participante com ênfase na atuação das igrejas; levantamento de materiais institucionais; e, entrevistas. Os entrevistados foram pessoas convertidas à religião, com experiência de envolvimento com a violência; líderes religiosos e coordenadores de serviços sociais prestados por entidades religiosas. Ao todo, participaram do estudo, 14 igrejas e associações religiosas entre as confissões católica, evangélicas e espíritas. O trabalho de campo ocorreu entre dezembro de 2010 e dezembro de 2012.
 
Para o tratamento dos dados utilizou-se a Análise de Enunciação, que considera a palavra como sentido, mas também transformação, incluindo, como parte da compreensão do discurso, aspectos históricos e sociais. Na análise, nenhuma fala foi considerada desconectada do contexto que a produziu. O discurso, como produto de complexas interações que envolvem o lugar de onde se fala e sobre quem se fala, deve problematizar a historicidade e as condições sociais de emergência das enunciações. 
 
A observação participante ocorreu durante todo o trabalho de campo, tanto nos espaços institucionais, como durante as visitas nas comunidades e em conversas informais. Acompanhou-se também atividades como cultos, missas e outras celebrações, momentos de trabalho social e do cotidiano institucional. 
 
Informe ENSP: Quais foram os resultados encontrados na pesquisa? 
 
Fernanda:Os resultados e a discussão desta pesquisa foram apresentados em quatro artigos e cada um deles busca responder à questões especificas sobre o papel da religião no tema. O primeiro artigo é uma revisão sistemática da literatura sobre o Papel da Religião na Promoção da Saúde, na Prevenção da Violência e na Reabilitação de Pessoas Envolvidas com a Criminalidade. Seus principais resultados apontam a função do grupo religioso e o papel da religião na reabilitação de pessoas, na prevenção do envolvimento com a criminalidade, em orientações correcionais e em territórios de iniquidade social. 
 
O segundo texto fala sobre O papel das igrejas e da conversão religiosa na prevenção da violência e na recuperação de pessoas. Os líderes religiosos destacam o importante papel de suas entidades em Manguinhos e, os “convertidos”, ressaltam a importância da conversão à religião em sua recuperação, reafirmando a relevância do trabalho das igrejas. O próximo artigo aborda as relações entre Políticas Públicas, Estado e Religião no Complexo de Manguinhos, focando a visão dos coordenadores de serviços sociais das instituições religiosas. Os coordenadores apontam a escassez ou a falta de qualidade das políticas públicas e dão realce às atividades desenvolvidas pelas instituições religiosas, algumas em parceria com o Estado, considerando-as como preventivas ao envolvimento com a violência. 
 
No quarto e último artigo, analisa-se O papel de Comunidades Terapêuticas religiosas na recuperação de dependentes de drogas: o caso de Manguinhos, RJ. Há ampla presença de instituições religiosas na oferta de CTs como proposta de cuidado ao abuso e dependência de drogas. A principal forma de recuperação é a evangelização e a conversão religiosa. Nele é discutido o modelo de tratamento religioso, centrado na oração e na abstinência, o que se choca com as políticas de saúde mental praticadas pelos profissionais do sistema público de saúde. Portanto, é grande a controvérsia pública gerada a partir destas contradições.
 
Informe ENSP: Com seu estudo você aponta propõe algum tipo de intervenção ou mudança nas atuais políticas públicas da área? 
 
Fernanda: Em relação às políticas de tratamento de dependentes de drogas, cabe cumprir o que já é política pública, isto é, o tratamento nos dispositivos territoriais de saúde mental, em especial os Centros de Atenção Psicossocial - Álcool Drogas (Caps ad). Também cabe ao Estado investir no fortalecimento e expansão dos serviços já preconizados, ao invés de abraçar um projeto terapêutico genérico, baseado em princípios religiosos-morais, terceirizando a atenção às Comunidades Terapêuticas (CTs). 
Durante o desenvolvimento da pesquisa constatou-se que são várias as religiões que atuam de forma protetiva frente a contextos de vulnerabilidade e como apoio social. Pois os sujeitos podem, em suas trajetórias pessoais, ter múltiplos pertencimentos religiosos, o que não invalida sua crença e a busca por melhores condições de vida e de saúde. Em relação a este tipo de comportamento, se, por um lado, as pessoas não se sentem presas a uma única denominação e se alimentam de forma positiva de diferentes crenças, formando uma espécie de sincretismo individual, por outro, podem também ocorrer usos funcionalistas de uma religião que mais sirva ao sujeito em determinado contexto.
 
Um ponto muito relevante a que este estudo me conduziu foi a compreensão dos múltiplos significados da religião para os diferentes atores entrevistados, que, por sua vez, ocupam diferentes papéis e funções sociais. Por isso, entendi que indagações a respeito do papel da religião não podem ser respondidas de maneira unívoca ou unidirecional. A crença numa suposta pureza de intenções e de ações provenientes de pessoas religiosas não se justifica, o que leva a concluir que a religião não tem uma “natureza” boa ou má. A religião é o que se faz dela: as atitudes de seus líderes e demais representantes.
 
Informe ENSP: Como se dá a distribuição destes serviços e de religiões na comunidade estudada? 
 
Fernanda: O espaço ocupado pelas ações sociais realizadas por instituições religiosas em Manguinhos é amplo. Em parte, algumas substituem ou atuam em parceria com o Estado, a partir da concessão e/ ou terceirização de serviços. Experiências de recuperação de pessoas em presídios, já amplamente estudadas, deixam bastante claro seu papel de substituição às políticas públicas. Durante toda a pesquisa, pude constatar a inexistência de políticas de ressocializacão em Manguinhos, tanto na esfera religiosa, quanto na pública.
 
Apesar de certa pluralidade religiosa, registrou-se a ausência de igrejas de matriz africana, outrora tão presentes no espaço social brasileiro, particularmente nos bairros populares. Essa é uma indagação que não respondi, mas mantenho a hipótese bastante provável e já levantada por outros estudiosos, da progressiva expulsão dessas religiões dos territórios ocupados pelas denominações pentecostais que as consideram “feitiçaria” ou ligadas ao “demônio”. Esse movimento se dá, não raras vezes, de forma extremamente agressiva e com conotação de intolerância religiosa.
 
É preciso ressaltar que, pela observação e por meio das entrevistas, pode-se perceber que o discurso das igrejas e de seus líderes afirma a existência do mal nas favelas, reforça o caráter periculoso do território e de sua população como marginal. Reproduzindo, assim, em seu conteúdo e na prática, a relação entre pobreza e perigo tão comum na mentalidade brasileira. Nesse sentido, os agentes religiosos de Manguinhos, com ênfase nos evangélicos, se colocam no papel de ordenadores da localidade, promovendo o controle e a biopolítica no território tido como desarranjado, desorganizado e caótico.
 
Nesse sentido, as comunidade são frequentemente confundidas como lócus da criminalidade e ninho do tráfico de drogas. No entanto, é preciso deixar claro que a favela e seus moradores vivem sob vários cercos: o cerco da violência criminal e o das forças de segurança; o cerco do estigma das populações mais abastadas; o cerco, ainda, da doutrina das igrejas com seu discurso e práticas religiosas e morais; e, não menos importante, o dos aparelhos estatais e das entidades não governamentais que também tratam a favela como lócus da sociabilidade violenta, reforçando o mito das classes perigosas.