GI. No momento histórico vivido pelo país, a Psicologia brasileira - ciência e profissão - vem a público apresentar seu posicionamento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manutenção das instituições democráticas que garantem o estado de direito, conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal: a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.
II. A laicidade do Estado deve ser entendida como princípio pétreo, jamais pode ser colocada em questão, pois é sob essa base, segura e inquestionável, que se assenta a igualdade de direitos aos diversos segmentos da população brasileira, cuja extraordinária diversidade cultural e religiosa, uma das maiores do planeta, constitui um formidável potencial para resolução de inúmeros problemas da sociedade contemporânea.
III. O Estado Brasileiro, entretanto, não nasceu laico. Durante séculos o país viveu sob a égide de uma religião, o que determinou a interferência do dogma religioso na política do Estado. Durante esse período ocorreram perseguições religiosas e muitas arbitrariedades foram cometidas. Com a República o país tornou-se oficialmente laico e, com a Constituição de 1988, esse fato foi reafirmado de forma representativa pela população brasileira, conquistando total legitimidade. Portanto, entendemos ser legítimo afirmar que a laicidade do Estado configura-se como um princípio pétreo, inquestionável, que expressa o anseio da população brasileira.
IV. Afirmar que o Estado é laico não implica alegar que o povo deva ser desprovido de espiritualidade e da prática religiosa. No Brasil, como se sabe, o povo experimenta forte sentimento de religiosidade, expresso por meio de múltiplas formas de adesão religiosa, dadas as suas raízes indígenas, europeias e africanas, a cujas determinações culturais e religiosas se associaram outras, advindas do continente asiático. São exatamente os princípios constitucionalmente assegurados que permitiram a ampliação das denominações religiosas, hoje presentes na cultura nacional, e também concederam aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se não adeptos de qualquer religião. Afirma-se, portanto, e, antes de tudo, o "direito à liberdade de consciência e de crença".
V. Como o estado de direito é preservado e retroalimentado pelas instituições que compõem a sociedade, tanto as ciências como as práticas profissionais delas decorrentes devem, obrigatoriamente, orientar suas ações com base no princípio pétreo da laicidade do Estado. Assim, a Psicologia brasileira, por meio do Sistema Conselhos de Psicologia reconhece a obrigatoriedade de pautar-se por esse referencial ao realizar suas ações de orientação, fiscalização e regulamentação da profissão. Isso faz parte do compromisso social da Psicologia.
VI. No Código de Ética da Psicologia há referências importantes sobre a questão como, por exemplo, os princípios fundamentais que afirmam o "respeito na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade", bem como a "eliminação de qualquer forma de discriminação", além disso a responsabilidade dos psicólogos e psicólogas passa necessariamente por uma "análise crítica e histórica da realidade política, econômica, social e cultural."
VII. Mas pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade.
VIII. A religião é um dos elementos mais complexos e irredutíveis da tessitura das culturas.Aborda a relação das pessoas com aspectos transcendentais da existência. Seus fundamentos e práticas orientam de forma significativa as ações humanas. Pessoas e instituições que orientam seu fazer social tendo por referência a religião o fazem, a partir de um pressuposto que reflete suas crenças e, portanto, sua religiosidade.
IX. A busca do fundamento sagrado da vida, daquilo que confere sentido à existência é, entretanto, de ordem espiritual. Desta forma, compreende-se que as religiões se encontram na espiritualidade. Todavia, a buscado sentido último da existência, não se reduz à religião.
X. Como já se afirmou, compete ao Sistema Conselhos de Psicologia orientar, fiscalizar e disciplinar a categoria para que os profissionais da Psicologia prestem serviços à sociedade. Num estado democrático é obrigação das instituições que o compõem pautar suas ações pela garantia dos direitos constitucionais. Esse é, portanto, o escopo maior que orienta as ações desse Sistema.
XI. Reconhecemos a importância da religião, da religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, particularmente num país com as especificidades do Brasil. Neste sentido compreendemos que tanto a religião quanto a psicologia transitam num campo comum, qual seja, o da produção de subjetividades, entendendo ser fundamental o estabelecimento de um diálogo entre esses conhecimentos. Este fator requer da Psicologia toda cautela para que seus conhecimentos, fundamentados na laicidade da ciência, não se confundam com os conhecimentos dogmáticos da religião. Reconhecemos, também, que toda religião tem uma dimensão psicológica e que, apesar da Psicologia poder ter uma dimensão espiritual, ela não tem uma dimensão religiosa, o que nos remete ànecessidade deaprofundarmos o debate da interface da Psicologia com a espiritualidade e os saberes tradicionais e populares, além de buscarmos compreender como a religião se utiliza da psicologia.
XII. Reconhecemos, portanto ser a espiritualidade o fundamento dos Saberes Tradicionais e suas racionalidades.
XIII. Segundo orientações da OMS, a compreensão da integralidade dos seres humanos trazida por saberes tradicionais é perfeitamente articulável à trazida por saberes científicos. Daí a importância de colocar em diálogo os conhecimentos acumulados nesses dois âmbitos para maior compreensão das subjetividades e para maior conhecimento das interfaces estabelecidas pela Psicologia com outras ciências e com as religiões.
XIV. Todavia, somos terminantemente contrários a qualquer tentativa fundamentalista de imposição de dogma religioso, seja ele qual for, sobre o Estado, a Ciência e a profissão e, a qualquer forma de conhecimento que procure naturalizar a desigualdade social, a pobreza ou o cerceamento dos direitos constitucionais. Por isso, não pouparemos esforços para garantir o estado de direito e as instituições democráticas, compreendendo ser essa a condição sine qua non para a manutenção e o desenvolvimento da saúde psicossocial da população brasileira, base para um processo saudável de subjetivação.