sábado, 25 de janeiro de 2014

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E SEUS TERRITÓRIOS

Casa é uma experiência existencial primitiva,
ligada ao que há de mais precioso na vida humana,
que é a relação afetiva entre os que a habitam.
Leonardo Boff
Por Alexandre Trino
Rosana Ballestero Rodrigues
Antonio Garcia Reis Junior

Entendendo que o indivíduo em situação de rua, no seu processo de exclusão, sofre rupturas familiares, sociais e afetivas,tendo que necessariamente vivenciar novas formas de se relacionar em contextos sociais marcados pela desumanização e caracterizados por estigmas, violência e segregação, o que o incita a ressignificar sua inserção no andar a vida, consideramos importante ressaltar o gráfico a seguir, no qual a psicodinâmica da vida nas ruas representa um conceito de construção de resiliência e que deve ser entendido pelo profissional sob o prisma de como essa população se move nos seus contextos relacionais.


Diante dessa realidade, o indivíduo sente a necessidade da busca de mecanismos psíquicos de adaptação que possibilitam conviver com a nova realidade que a ele se impõe, construindo uma resiliência, que, como define Grotberg (1995), é a “capacidade universal humana para enfrentar as adversidades da vida, superá-las ou até ser transformado por elas”, implementando em si novos recursos de mediação.

A figura acima nos faz refletir sobre a necessidade do enfrentamento dessa realidade, com políticas
que compreendam o contexto da psicodinâmica da vida nas ruas, por meio de estratégias como os
Consultórios na Rua. Esses dispositivos desenvolvem ações integrais de saúde in locu, visando a serem
resolutivos perante as necessidades de saúde da população em situação de rua (PSR), realizando uma
abordagem ampliada, que possibilite a essa população o acesso ao cuidado da sua saúde como um
direito, e não mais como uma “caridade” ofertada. O direito à atenção integral à saúde, estendido a todo
e qualquer brasileiro, é um princípio preconizado pelo SUS, advindo do sentido de democracia a ser
incorporado pela sociedade e garantido pelo Estado.

Os Consultórios na Rua são formados por equipes multiprofissionais dentro dos moldes instituídos
pela Política Nacional de Atenção Básica (2011), e suas equipes deverão realizar as atividades de forma
itinerante e, quando necessário, utilizar as instalações das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do território
adscrito ao qual se fez abordagem, desenvolvendo ações em parceria com as equipes das unidades.

Levando-se em consideração ser característica dessa população a circulação constante por diversos territórios, é de suma importância a articulação da rede de serviços no sentido de efetivar a coordenação
do cuidado e fortalecimento do vínculo não só pela equipe do Consultório na Rua, como também pelas
equipes das UBS, de modo que estas também sejam referência e se responsabilizem pelo usuário.
Algumas estratégias são essenciais para o trabalho com a PSR. Além de os profissionais de saúde
necessitarem de abordagem diferenciada, há ferramentas e estratégias que podem subsidiar as equipes
na abordagem específica.

Inicialmente, é preciso reconhecer quem é essa população em situação de rua, por meio de diagnósticos, censos, cartografias, mapeamento de área, ou seja, diferentes nomes e mecanismos para que a equipe de saúde possa identificar quem são as pessoas em situação de rua, onde elas costumam
ficar, como se relacionam com a comunidade, os serviços públicos e estabelecimentos privados, como
acessam os programas assistenciais, quais são as dificuldades que apresentam, quais os recursos comunitários disponíveis e que parcerias intersetoriais e interinstitucionais podem ser firmadas. Além dos estudos já citados na caracterização dessa população, a equipe deve tentar buscar dados de base local que sofistiquem sua compreensão sobre a clientela pela qual se responsabiliza, seja por meio de censos locais, estudos de organizações não governamentais e da sociedade civil como um todo, seja por meio de estudos antropológicos, sociológicos e etnográficos, conforme o de Mendes (2007).

Os problemas de saúde demandados pela PSR têm origem em situações complexas, cuja resposta
necessita de intervenções articuladas entre os gestores, profissionais de saúde e com diversos outros
setores. Nesse contexto, todas as variáveis envolvidas no uso e tráfico de drogas, a dificuldade de prevenção de certos agravos transmissíveis (como DST, dengue, leptospirose, tuberculose, dermatoses) e agravos em saúde mental e a ruptura de vínculos na relação familiar são exemplos de que a equipe deve buscar envolver outros atores para conseguir realizar atenção integral à saúde dessas pessoas.

Os profissionais de saúde devem buscar parcerias para o enfrentamento dos determinantes sociais
do adoecimento, tais como problemas na limpeza urbana, falta de recursos para a economia solidária e
escassez de equipamentos sociais direcionados ao apoio da população em situação de rua, de modo a
oferecer melhores respostas a essas pessoas, contribuindo de forma mais efetiva para o desempenho
clínico-assistencial.

Parece haver consenso sobre a importância da assistência em saúde não levar em conta somente
os fatores biológicos, mas incorporar a estes os condicionantes e determinantes sociais do processo
saúde–doença, bem como a subjetividade dos sujeitos, possibilitando, assim, uma produção de saúde
integral mais efetiva.

Apesar desse pretenso consenso, nos serviços de saúde, a ideia de assistência ainda não contempla,
necessariamente, atendimento humanizado. Para isso, o acolher, o acesso e o vínculo, enquanto
prática política e terapêutica, precisam fazer parte da agenda em saúde na perspectiva de enxergar
o sujeito de direito com vistas a garantir os princípios de universalidade, integralidade e equidade no
acesso, respaldados pela Constituição de 1988, pela Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS) de
1990 e reforçados pela nova Política Nacional de Atenção Básica de 2011.Nesse sentido, ressaltamos
ainda o Decreto nº 7.508/2011,que cria as regiões de saúde e define a oferta de serviços e a relação hierarquizada deles, estabelecendo a atenção básica como porta de entrada preferencial do SUS, pela qual os pacientes podem ter acesso aos serviços de saúde.

Na dimensão do acesso do usuário em situação de rua, vale ressaltar que esse grupo social normalmente se reporta ao serviço de saúde em situações emergenciais, não reconhecendo seu corpo doente até que o sintoma paralise suas atividades diárias. Assim, diante das especificidades do atendimento a essa população, mesmo sem consulta marcada ou encaminhamento para marcação de consulta – no fluxo hierarquizado de referência e contrarreferência –, esse usuário deve ser acolhido para que consiga alguma orientação, conforto e encaminhamento para a resolução de seu problema. Caso contrário, sua circulação/acesso pela rede poderá ficar impossibilitada perante os inúmeros procedimentos impessoais e burocratizados.

O fato de ter ocorrido procura pelo serviço sinaliza reconhecimento pelo usuário da oportunidade de
cuidado, de construção de vínculos positivos.

Abaixo, citamos alguns pontos importantes para auxiliar o profissional de saúde no atendimento
integral à PSR:
• Concepção de saúde não centrada somente na assistência aos doentes, mas, sobretudo, na promoção de saúde e no resgate da qualidade de vida, com intervenção nos fatores que a colocam em risco;
• Incorporação das ações programáticas, incluindo acesso às redes sociais;
• Desenvolvimento de ações intersetoriais;
• Consciência dos aspectos que condicionam e determinam um dado estado de saúde e dos recursos existentes para sua prevenção, promoção e recuperação;
• Para a organização desse modelo, é fundamental que sejam pensadas as “linhas do cuidado” (da criança, do adolescente, do adulto, do idoso etc.);
• O trabalho em equipe é um de seus fundamentos mais importantes.

Considerando as fases das diretrizes do cuidado junto à população em situação de rua, o diagnóstico
situacional inclui, além da escuta direta das pessoas que compõem nosso público-alvo, a utilização
das informações colhidas em território no processo de cartografia, tais como: locais de maior concentração e faixas etárias da população em situação de rua, fluxos de trânsito vinculados aos horários associados à alimentação, ao sono, presença de policiamento e tráfico/consumo de drogas, detectando também as áreas críticas, no que se refere à violência, observando demandas de saúde, coexistência de transtornos mentais sem tratamento, prostituição e uso abusivo de álcool e drogas.

A dinâmica desses percursos, a escuta dessas demandas e o estabelecimento necessário de compromisso diante de algumas delas, de acompanhamento contínuo, podem representar para a equipe a necessidade de intensificar a sua presença em determinados territórios. O conhecimento gradativo, a
apresentação do serviço, a constituição de etapas fundamentais da formação do vínculo para acompanhamento tornam, ainda mais singular, cada microárea.

Com base nessas informações, a fase do diagnóstico instrumentaliza o planejamento das ações da
equipe do Consultório na Rua, com vistas a reconhecer as especificidades das subáreas identificadas
no território, com fluxo e perfil diferenciados, nas quais os processos de trabalho devem ser focados,
gerando práticas orientadas às demandas de cada uma das realidades observadas.

Assim contextualizado, o diagnóstico deve possibilitar à equipe um olhar focado em um tripé: território, grupo social e singularidade do sujeito.


Território: compreendendo-o como processo e para além de sua extensão geográfica, representa uma complexidade de fatores que, no diagnóstico situacional da rua, devem ser considerados. Frente aos diversos perfis e olhares, a equipe do Consultório na Rua deve ampliar sua percepção no sentido de reconhecer nesse contexto as variáveis sociais,culturais, demográficas, sanitárias, administrativas, políticas, econômicas, entre outras, de valiosa importância na construção do planejamento da equipe.

Desta forma, a noção de território em suas várias dimensões, tais como o “território físico”
(material, visível e delimitado), o “território como espaço-processo” (construído cultural e socialmente,
de forma dinâmica) e o “território existencial” (referido às conexões produzidas pelos indivíduos e grupos na busca de sentidos para a vida). Na prática, é importante perceber como essas diferentes perspectivas coexistem, se interpenetram e, às vezes, se tensionam. Um exemplo é o que ocorre nas chamadas “cidades-dormitório”, e outro é o dos territórios escolhidos/inventados pelas pessoas em situação de rua (BRASIL, 2012).

Autores como Barcellos (2007), Mendes (2007), Mehry (2002) e outros consideram que, no campo da
saúde, o território e suas variáveis representam um fator relevante para a compreensão do conceito de
risco, pois levam em consideração múltiplas dimensões das condições de vida que cercam as pessoas
em seus contextos sociais.

Assim, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao território que devem ser observados
pela equipe na realização do diagnóstico:

Grupo social: considerando ser a população em situação de rua, um grupo social que tem a maioria de seus direitos negados por um processo de exclusão social, ao qual Castel (1997, p. 28-29) denomina de “sobrantes”, indivíduos “que foram inválidos pela conjuntura econômica e social dos últimos vinte anos e que se encontram completamenteatomizados, rejeitados de circuitos que uma utilidade social poderia atribuir-lhes”.

No entanto, apesar da realidade citada acima, verificamos que pela convivência grupal – que é necessidade fundamental do ser humano – na rua essa população ressignifica suas relações sociais, constituindo novos grupos que se caracterizam por identidades definidoras de comportamento e da necessidade da sobrevivência.

Assim, é comum encontrarmos os indivíduos em situação de rua acompanhados ou próximos das
mesmas pessoas, dormindo nos mesmos lugares, reconstruindo vínculos afetivos, que em muitas das
vezes reproduzem o contexto familiar, até com denominações peculiares, tais como: família da rua, irmão da rua, mãe/pai da rua, filho da rua.

Dessa forma, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao grupo social que devem ser
observados pela equipe na realização do diagnóstico:

• Necessidade de identificar se o indivíduo está ou não vinculado a outra pessoa ou a algum
grupo social na rua;
• Faixa etária do grupo ao qual o indivíduo encontra-se inserido;
• Relações de gênero estabelecidas nos grupos;
• Uso de álcool e outras drogas;
• Atividades econômicas;
• Possíveis envolvimentos com ações ilícitas;
• Condições de risco e vulnerabilidade;
• Potencialidades do grupo social;
• Fluxos de circulação dos grupos no território;
• Prostituição masculina e feminina;
• Relações com o comércio e a comunidade local.

Singularidade do sujeito: cada ser humano traz consigo a marca da sua história e trajetória de vida, o que determina a sua singularidade. A partir desse princípio, o profissional de saúde que trabalha com população em situação de rua não pode deixar de considerar todos os aspectos subjetivos que contribuem para construir a identidade do sujeito e o lugar que hoje ocupa na sociedade e em seu contexto de vida.

Reconhecer que o indivíduo em situação de rua tem uma história que em algum momento o levou para a rua, é fator primordial para a realização do diagnóstico por parte do profissional de saúde. Vale ressaltar que nos dias de hoje encontramos nos contextos urbanos os chamados “filhos” e “netos”
da rua, pessoas que já nasceram e se criaram em situação de rua, tendo menores oportunidades de
inclusão social.

Dessa forma, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados à singularidade do sujeito que
devem ser observados pela equipe na realização do diagnóstico:















Para realizar o diagnóstico conforme acima descrito, a equipe deverá construir um planejamento de
ações diárias, como um roteiro a ser seguido em território na abordagem ao usuário. Esse roteiro deve
contemplar os pontos de atendimento que serão realizados pela equipe a cada dia da semana, bem
como outros fatores relacionados ao seu processo de trabalho no contexto de cada território, levando
em consideração os diferentes perfis de grupo e observando os critérios para a gestão de riscos eminentes no atendimento in loco.

A seguir, desenvolvemos orientações de ferramentas para processos de trabalho que devem nortear
as equipes do Consultório na Rua no que se refere à cartografia, abordagem e acolhimento.
Fonte: http://media.wix.com/ugd/7ba6db_95cb361af7884b56805a4f376bb83a57.pdf