domingo, 13 de outubro de 2013

Pesquisa Nacional sobre crack descreve cenário brasileiro

Desenvolvida pela Fiocruz, a Pesquisa Nacional sobre o Crack, lançada no fim de setembro, teve grande repercussão no país. . O estudo revelou que o Brasil possui 370 mil usuários regulares de crack nas capitais, dos quais 78,7% são homens, com de idade média de 30 anos. Para desdobrar o tema, o Informe ENSP publicará duas entrevistas sobre o estudo. Nesta sexta-feira (11/10), vai ao ar a entrevista concedida pelos coordenadores do estudo, os pesquisadores Francisco Inácio Bastos e Neilane Bertoni, do Laboratório de Informação em Saúde (LIS), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), à repórter Graça Portela e publicada na Agência Fiocruz de Notícias e na página do Icict/Fiocruz.


Na próxima sexta-feira, 18/10, o psicólogo Carlos Linhares falará exclusivamente ao Informe ENSP das cenas de uso de crack no município do Rio de Janeiro. O estudo é fruto de sua tese de doutorado, defendida no primeiro semestre deste ano, no âmbito do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública da ENSP, e está inserida diretamente naPesquisa Nacional sobre o Crack. Confira, abaixo, a primeira das entrevistas!

Quais foram as reações iniciais ao estudo?


Francisco Inácio Bastos:
 Nosso maior medo, quando divulgamos a pesquisa, era de que as pessoas fizessem cálculos errados e chegassem a números irreais. Algumas pessoas pegaram o número que obtivemos de 370 mil usuários de crack nas capitais e tentaram fazer uma regra de três, chegando ao total de 700 mil usuários. Já ouvimos até que alguns chegaram ao total de 1,6 milhão, incluindo as cidades de grande, médio e pequeno portes. Fizemos as estimativas, que são geradas por meio de procedimentos estatísticos, tomando por base as capitais, e não o conjunto de municípios do país. Temos perfis diferentes nos diferentes municípios. Assim, fazer essa extrapolação simplista seria um erro.

Os jornalistas que participaram da coletiva em Brasília perguntaram se poderiam aplicar uma regra de três simples, e explicamos por que isso não se aplicaria. Outra crítica é a questão da maconha. Usamos o critério da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que é um critério de “uso regular” do usuário em situação mais vulnerável, e a Opas não inclui a maconha no grupo de drogas ilícitas com maior potencial de risco. Assim, não abordamos a maconha, que não fez parte da pesquisa, até mesmo para comparar nossos resultados com resultados de estudos internacionais.

Neilane Bertoni: Como era uma pesquisa, solicitada inicialmente pelo gabinete da Presidência da República sobre um tema que está sempre na mídia, receber críticas e lidar com questões políticas foi a parte mais difícil, mas foi um bom começo. Aprendemos bastante. Estou muito satisfeita com o trabalho desenvolvido e acredito que os resultados poderão ser usados para ajudar as pessoas que mais precisam. Nossa pesquisa não avaliar os planos do governo em sua política sobre drogas. O Ministério da Justiça afirmou, no lançamento dos resultados, que, com esses dados, viu que, em algumas ações do plano Crack, É Possível Vencer, está acertando. Então, é intensificar o que está no caminho certo. Mas, em outras ações, será necessário realinhar a política que tinha sido pensada antes. Este é o caminho desejável em políticas públicas, realinhar políticas toda vez que surgirem novas evidências empíricas.

Qual é o perfil dos usuários de crack?

Francisco Inácio Bastos:
 Entre os usuários de drogas ilícitas, com exceção da maconha, 35% usam crack ou similares. A cocaína (em pó, aspirada e não fumada) continua sendo o carro-chefe das drogas ditas pesadas em uso. No Sul, 52% dos usuários de drogas ilícitas usam crack; na região Norte, 20% dos usuários de drogas ilícitas utilizam o crack. Então, não é possível tratar o crack como um problema nacional homogêneo, se temos diferenças regionais acentuadas. São necessárias políticas regionais mais específicas para tratar a questão das drogas no país. O perfil dos usuários mostra que são pessoas em grande vulnerabilidade. Quase metade dos usuários das capitais estava em situação de rua, e não podemos dizer se essas pessoas começaram a usar a droga e foram para a rua, ou se já moravam nas ruas e começaram a usá-la. Em sua imensa maioria, os usuários não têm trabalho regular.

Neilane Bertoni: Temos 370 mil usuários nas capitais e, desse número, 14% são crianças e adolescentes. Então, cai por terra a suposição de que a maioria dos usuários de crack é composta de menores de idade. Mas, mesmo assim, são cerca de 50 mil crianças que fazem uso regular da droga e precisam de uma abordagem diferente daquela dos adultos usuários. As mulheres fazem uso mais intenso da droga que os homens, a média foi de seis anos de uso para as mulheres e sete anos para os homens. Mas o consumo médio por dia para as mulheres é de 21 pedras de crack e, para os homens, 13 pedras. Quase a metade delas reportou já ter sofrido violência sexual pelo menos uma vez na vida, o que é um quadro bastante chocante. Dentro dessa população, as mulheres seriam as excluídas entre os excluídos. Elas são ainda mais vulneráveis.

O estudo revelou alguma surpresa?

Francisco Inácio Bastos: Ao contrário do que se pensava, de o Sudeste ser a região com maior número de usuários, o Nordeste é a região cujas capitais têm uma maior prevalência/proporção de usuários, estatisticamente igual à região Sul. Mas, em números absolutos, o Nordeste tem cerca de 148 mil usuários de crack/similares nas suas capitais, ao passo que a região Sul tem 37 mil. Ao contrário das grandes cracrolândias, com números elevados de usuários, no Nordeste as cenas são de pequenos grupos de três, cinco pessoas, até para chamar menos atenção em função de uma estrutura urbana distinta de, por exemplo, São Paulo, que é uma cidade mais densa.

O que a pesquisa esclarece a respeito do tempo de uso da droga?

Francisco Inácio Bastos: O que se dizia é que a pessoa usaria o crack por um ano e morreria. Constatamos que isso não é uma verdade absoluta. Existem pessoas que o usam há 15 anos, e outras que o usam há menos tempo. Mas encontramos uma média de uso de oito anos entre os usuários. Diversas pessoas fazem uso intermitente do crack, intercalando-o com o de outras substâncias. O usuário de crack é, antes de tudo, um poliusuário, o que exige um manejo integrado das diferentes situações de consumo abusivo e eventual dependência. Outro detalhe que chamou a atenção é que cerca de 90% dos usuários utilizam tabaco e quase 80% usam álcool. Eles são consumidores de drogas lícitas, permitidas pela lei, o que pode agravar ainda mais sua saúde. São poliusuários.

Infelizmente, não nos foi possível avaliar com o necessário detalhe os eventuais problemas psiquiátricos coexistentes, pois isso exigiria entrevistas longas e minuciosas, não factíveis nas cenas de crack. Mas, na minha prática cotidiana, como voluntário de um serviço que atende a população de rua, é evidente a superposição de formas graves de abuso e dependência e quadros psiquiátricos diversos (como depressão e mesmo psicoses). Na população em geral, vem declinando o número de pessoas que fumam, mas entre os usuários essa proporção é altíssima, e não podemos nos esquecer de que existe aí uma superposição de duas substâncias consumidas pela mesma via (ambas são fumadas).

Onde estão os usuários?

Francisco Inácio Bastos: A grande maioria da população que usa crack não está em casa, especialmente em horários em que as pesquisas domiciliares podem ser realizadas (pois não é ético e aceitável abordar pessoas em seus domicílios de madrugada). Muitos não possuem domicílios fixos. Podem estar nas ruas, em abrigos, em comunidades terapêuticas, ou seja, pouco provavelmente encontraremos essas pessoas em casa, em horário regular (por exemplo, entre 9 e 17 horas), para responder a um inquérito tradicional. Assim, estaríamos subestimando o número de usuários, o que levaria a um erro nas pesquisas e, consequentemente, na formulação e avaliação das políticas.

Neilane Bertoni: No inquérito domiciliar, entrevistamos cerca de 25 mil pessoas da população em geral, não necessariamente usuários de drogas, um número bastante grande, a fim de obtermos a adequada precisão estatística. Nas próprias cenas de uso da droga, foram realizadas 7.381 entrevistas no país como um todo. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad/Ministério da Justiça) já tem levantamentos periódicos, feitos com universitários e escolares. Também já existe um estudo nacional feito em domicílio para estimar o número de usuários de diversas drogas. E será lançado, em breve, outro edital para dar prosseguimento a essa série histórica. Pretende-se que, no novo edital, seja incluída a metodologia que utilizamos para a estimação do tamanho da população de usuários.

Na metodologia tradicional, o entrevistador vai aos domicílios e pergunta às pessoas se elas usam drogas, lícitas e ilícitas. No caso de álcool e algumas drogas ilícitas, não há muito problema para a pessoa responder, mas, em se tratando de drogas mais estigmatizantes, como a cocaína, por exemplo, as pessoas podem omitir o uso. Por exemplo, a pessoa poderia não dizer que é usuária de crack, por medo de ser internada ou sofrer algum tipo de sanção judicial. Assim, muito provavelmente estaríamos subestimando o número de usuários nesse tipo de metodologia direta.

Qual foi a metodologia usada?

Neilane Bertoni:
 A metodologia que utilizamos no inquérito domiciliar para saber o número de usuários realmente a define como uma pesquisa inovadora no país. Essa metodologia já foi utilizada em vários lugares do mundo em populações totalmente distintas, pois é um método usado para estimar populações de difícil acesso, ou ocultas, ou escondidas, como usuários de drogas, mulheres que já fizeram aborto (em locais em que é ilegal e/ou estigmatizado), pessoas que sofreram violência sexual, vítimas de terremoto etc. São populações das quais não se têm um cadastro para podermos contar quantas são. Com essa metodologia que adotamos (network scale-up), não perguntamos se a pessoa usa a droga, mas quantas pessoas da rede social dela fazem uso das drogas em geral e do crack.

Com isso, conseguimos estimar também as pessoas que usam drogas, mas que não estão regularmente domiciliadas. Foi a maior pesquisa já realizada no mundo, pois em geral esse tipo de pesquisa é feito em uma única comunidade, em uma cidade, em pequenos grupos. A segunda pesquisa mais ampla foi publicada há pouco e realizada na província de Chongqing, na China, por meio de uma parceria entre os Centros de Controle de Doença da China e dos EUA, e foram entrevistadas cerca de 3 mil pessoas. No Brasil, a única outra pesquisa já realizada com esse método foi a que fizemos em Curitiba (PR), uma parceria com a Universidade de Princeton, para estimar o número de usuários de drogas naquela cidade. De fato, são duas pesquisas separadas: uma estima o número de usuários de crack no Brasil, Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país, e a outra, Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil, sobre o perfil dos usuários no Brasil como um todo, em cenas de uso aberto.

Francisco Inácio Bastos: A outra metodologia utilizada foi a time-location sample (TLS), que seria uma amostragem dinâmica, por tempo e espaço. Vamos a campo em dias e horários alternados para entrevistar os usuários de crack, em seu local de consumo da droga. Realizamos as entrevistas e testes rápidos para HIV e hepatite C.

Neilane Bertoni: A metodologia pode ser utilizada em municípios específicos do Brasil ou em outros países para estimar esta ou qualquer outra população de difícil acesso. Temos de trabalhar com as informações que o local nos fornece.

Por exemplo, para realizar a nossa pesquisa, é necessário contar com 20 cadastros de populações conhecidas em cada cidade onde iremos fazer a pesquisa, como cadastro de motoristas de ônibus, professores, pessoas que recebem Bolsa Família etc. Nas cidades maiores, os cadastros são mais confiáveis, mas, em municípios menores, não têm uma boa qualidade ou podem mesmo não existir. Esse foi um dos motivos pelo qual não fizemos a pesquisa em todo o país no inquérito domiciliar. Ficamos apenas nas capitais. Não havia como acessar e compatibilizar todos os cadastros de todos os municípios, que deveriam seguir exatamente os mesmos critérios.

Qual é a posição dos entrevistados sobre o tratamento?

Neilane Bertoni:
 As pessoas têm vontade de fazer um tratamento, e essa é a questão central que precisa ser focada. Por exemplo, quase 80% dos usuários no país têm vontade de receber tratamento, o que torna esvaziada a questão da internação compulsória, ela não se sustenta mais. Essa solução higienista vem se mostrando completamente falha em diversos países do mundo, como demonstrado em estudos bastante detalhados conduzidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sem suporte social, essas pessoas não têm a oportunidade de reencontrar um caminho de bem-estar. Não se busca necessariamente a abstinência da droga. O que se pretende com o tratamento é que o uso (ou não) da droga não interfira no dia a dia da pessoa, que ela possa trabalhar, estudar, conviver com seus amigos e familiares.

Agora é trabalhar essa vontade para que o usuário de fato busque o tratamento. Quando perguntamos ao usuário o que facilitaria a sua busca por um tratamento em relação a sua dependência, ele fala que este deveria ser um lugar que tenha comida, onde possa tomar banho, que lhe dê suporte para obter um emprego ou frequentar uma escola. Isso demonstra que o enfoque social e assistencial tem de estar integrado à saúde, para ajudar no tratamento da droga.

Que desafios foram encontrados durante a pesquisa?

Francisco Inácio Bastos:
 Essa pesquisa foi uma grande realização e um grande desafio: foi a mais difícil que já fiz, pela abrangência e a situação complexa das cenas. Outro dia, ouvi de um profissional que essa pesquisa, para alguns colegas da área, funcionou como um marco; pela primeira vez, não só foram empregadas metodologias inovadoras, o que por si só já é um avanço, como também se faz uma pesquisa de tal porte no contexto em que essa população vive. As pesquisas de campo com drogas ilícitas no Brasil se dividiriam em antes e depois dessa pesquisa. É a primeira vez que uma pesquisa dessa extensão trabalha no contexto do uso da droga, com pessoas com uma grande carga de sofrimento em locais de risco. Trabalhar no campo sem um respaldo direto é algo impossível, mesmo para quem é experiente. Já estou há 30 anos nessa área de pesquisa, mas esse foi, sem dúvida, meu maior desafio.