O pesquisador Nilson do Rosário, do Departamento de Ciências Sociais, assinou o artigo intitulado "O mal-estar com a política pública de saúde no Brasil", publicado na edição de quarta-feira (7/8) do jornal Valor Econômico. No texto, Nilson afirma que o resultado da fragmentação de interesses no sistema de saúde não é favorável para a perspectiva de justiça distributiva no país. Segundo ele, o país necessita urgentemente de uma concertação política com foco no papel do governo federal e na redefinição da relação público e privado no setor. Confira abaixo o artigo na íntegra.
O mal-estar com a política pública de saúde no Brasil
Nilson do Rosário
Em fevereiro de 2013, as associações científicas da saúde pública reagiram de maneira especialmente dura à notícia que o governo federal apoiaria a expansão dos planos de saúde. Ele teria aberto conversação com lideranças empresariais para a redução de impostos em troca da ampliação dos beneficiários na "nova classe média". A sinalização do governo Dilma a favor dos planos informava à sociedade que a saúde é assunto individual, da esfera do consumo. Os descontentes argumentaram que a decisão era um erro brutal porque acirrava a irracionalidade da política setorial. Os protestos de junho recolocaram na pauta o sentimento de mal-estar com a política de saúde brasileira ao demandarem hospitais públicos no "padrão Fifa de qualidade".
O governo Dilma herdou duas políticas substancialmente antagônicas: 1) o compromisso com o Sistema Único de Saúde (SUS), originado na Constituição de 1988, de acesso universal e gratuito; 2) e a articulação orgânica do governo federal com o setor de planos de saúde por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Poucos países apresentam tamanho conflito de objetivos na política sanitária.
Ao admitir a possibilidade de incentivar mais planos de saúde, o governo Dilma confirmava que o SUS saíra da agenda do PT e partidos coligados. O Executivo federal já tinha vetado partes da Emenda Constitucional 29 pelo Decreto 7.508 de 2011, que a regulamenta. Pelo decreto, a União conseguiu uma situação muito confortável ao se comprometer em gastar anualmente na saúde apenas o montante correspondente ao valor empenhado no ano anterior, acrescido do percentual da variação nominal do PIB, ao invés dos 10% da receita bruta federal demandada pelos demais entes federativos.
Municípios e estados são os principais perdedores face ao veto presidencial, tendo que destinar 12% e 15% da receita bruta, respectivamente, para o financiamento da saúde. Nos últimos anos a maioria dos municípios comprometeu recursos próprios muito acima do piso de 12% com assistência à saúde, enquanto que governo federal reduziu a participação. O governo Dilma é indiferente à perda de protagonismo do governo federal no financiamento do SUS, herança do governo Lula. Em 1995, a União arcava com 64% do financiamento público. Em 2008, a participação federal caiu para 44% das despesas públicas. A consulta nas especialidades médicas, os exames e as cirurgias são as principais intervenções médicas objeto de brutal racionamento pelo SUS, impondo aos usuários longos períodos de espera.
O débil envolvimento do governo central brasileiro no financiamento do sistema de saúde e a falta de uma agenda de reforma organizacional têm afetado duramente as suas funções de coordenação e incentivo ao desenvolvimento do setor público. A única face dinâmica do setor público de saúde brasileiro tem sido o desenvolvimento da atenção primária pelos governos dos municípios pequenos e médios. Na maioria das grandes cidades - com população acima de 100 mil habitantes - constata-se o aprofundamento de um elevado déficit na oferta de serviços públicos especializados, de serviços diagnósticos e na distribuição gratuita de medicamentos. Em outubro de 2012, havia no município de São Paulo 660 mil pessoas na lista de espera para consulta com especialista, exame ou cirurgia (Folha de S.Paulo, 18 de janeiro de 2013).
Além disso, em poucos estados da federação observa-se o desenvolvimento de serviços hospitalares e especializados públicos. A regra da ação dos governos estaduais é tomada de decisão pela provisão errática de serviços públicos de emergência dissociados de qualquer estrutura articulada de seguimento dos pacientes e apoio no acesso aos medicamentos. Esse quadro na provisão de serviços públicos confirma o diagnóstico de ativistas e cientistas da saúde coletiva sobre a tendência à focalização da assistência governamental na população pobre, mesmo diante no quadro legal de orientação universalista estabelecido pelo SUS.
A opção pela focalização da ação da esfera pública nas famílias pobres, embora atraente à primeira vista, gera uma falha regulatória sistêmica calamitosa porque é acompanhada pela redução na disponibilidade dos serviços mais complexos na esfera governamental.
As características do desembolso direto na saúde no Brasil refletem a fragilidade e a ambiguidade das decisões nacionais no setor. Os estratos pobres concentram as suas despesas por desembolso direto com saúde no consumo de medicamentos, na aquisição de plano de saúde, assistência ambulatorial especializada, cuidado odontológico e exames complementares. Em 2010, a população financiou, por meio do desembolso direto, 39% das despesas nacionais com saúde.
O estrato superior da renda concentra suas despesas na aquisição de plano de saúde. Desde a década de 1980, existem incentivos fiscais para que as famílias adquiram plano de saúde pela intermediação dos empregadores privados e governamentais. Neste contexto, a política do governo federal para os planos de saúde tem sido um sucesso sob a ótica do mercado regulado. Ademais, a aceitação pela ANS da seleção de risco tem permitido a concentração da comercialização de planos de saúde na população jovem e inserida no mercado formal de trabalho.
Em 2012, entre indivíduos com planos de saúde no país, 63% tinham emprego no setor público ou privado. Apesar de capitalizadas, as empresas penalizam os beneficiários pelo não cumprimento dos prazos de atendimento, falta de especialistas e insuficiência de serviços diagnósticos e de leitos. Reclamações sobre negativas de tratamento de câncer, de transplantes, de doenças cardíacas, transtornos mentais e outros agravos crônicos tornaram-se corriqueiras. Os longos prazos de espera por tratamento resultam da combinação perversa da escassez de serviços com triagens e exigências de autorização prévia.
O resultado da fragmentação de interesses no sistema de saúde não é favorável sobre a perspectiva de justiça distributiva no país. O sistema de saúde brasileiro tornou-se iníquo e regressivo sob o ponto de vista das despesas das famílias. A provisão da assistência à saúde permanece, sem dúvida, como um grande desafio da democracia brasileira. O país necessita urgentemente de uma concertação política com foco no papel do governo federal e na redefinição da relação público e privado no setor.