Por David de Souza
“A nossa casa é de carne e osso
Não precisa esforço para namorar
A nossa casa não é sua nem minha
Não tem campainha pra nos visitar
A nossa casa tem varanda dentro
Tem um pé de vento para respirar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar”
(Arnaldo Antunes e Celeste Moreau Antunes)
Rua e saúde
A vida na rua pode ser abordada como causa ou consequência de problemas de saúde. Há quem vá viver na rua e, por isso, adoeça e há quem adoeça e, por isso, vá viver na rua. Um morador pobre e doente de área rural pode acorrer a um grande centro urbano porque apenas ali há equipamentos de saúde dos quais necessita. Sem recursos para custear um alojamento, ele passa a dormir nas ruas. “Problema de saúde” foi a causa de ida para as ruas relatada por 7% dos entrevistados pela Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, desenvolvida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Por outro lado, a vida na rua pode precipitar problemas de saúde secundários ao aumento da exposição a riscos de doença, como vulnerabilidade às violências, ingestão de alimentos e água contaminados, variações climáticas extremas e muitos outros. O trecho retirado da pesquisa mencionada acima ilustra bem as dimensões possíveis de causa e consequência na relação da rua com a saúde por meio do exemplo do uso de álcool:“A população em situação de rua costuma usar abusivamente o álcool, seja por comportamento e hábitos anteriores, seja pelos adquiridos em função da necessidade de não sentir frio e de esquecer as realidades adversas.” (BRASIL, 2009)
A vida na rua expõe homens, mulheres e crianças a riscos que fazem com que essa população mereça, sob diversos aspectos, abordagem específica das equipes de saúde. Alguns desses riscos estão listados abaixo, mas você é convidado, a partir de sua prática, a aprimorar essa lista. Literatura escassa no País e número ainda pequeno de pesquisas sobre o tema fazem com que a dinâmica da vida nas ruas das grandes cidades e os determinantes de saúde relacionados a ela sejam um campo sob muitos ângulos ainda pouco explorado.
• Violências: viver na rua e, portanto, sem abrigo ou proteção adequada, deixa os indivíduos
mais vulneráveis às agressões de natureza física ou moral. Faz-se necessário constante estado de
vigilância e preparação para “fugir” ou “reagir”. A perpetuação da pressão exercida sobre essas
pessoas pode levar a diversas manifestações clínicas.
• Alimentação incerta e em baixas condições de higiene: segundo a pesquisa do MDS, uma em cada quatro pessoas vivendo nas ruas não consegue se alimentar diariamente. Nem sempre há meios de lavar as mãos antes das refeições. O uso de restos ou dietas exclusivamente à base de alimentos doados faz com que o consumo de nutrientes necessários seja irregular, levando a um estado nutricional inadequado.
• Água de baixa qualidade e pouco disponível: boa parte das pessoas que vivem nas ruas relata ingestão de água não potável em bicas, chafariz, torneiras de estabelecimentos comerciais e outros. A frequência de uso também é pequena, sendo comum o relato de aporte hídrico apenas uma vez ao dia, pela manhã ou à noite.
• Privação de sono: é difícil dormir na rua, seja por medo da violência, pelo desconforto gerado pelo frio ou pela dureza do chão. É preciso estar vigilante e protegido. Muitos optam por dormir durante o dia para poderem se prevenir da violência durante a noite.
• Privação de afeição: o relato de muitas pessoas que vivem nas ruas nos permite identificar alguns olhares por elas recebidos dos passantes. Olhar de medo, dos que apressam o passo, evitando uma abordagem; olhar de nojo, pela situação de higiene em que algumas se encontram; olhar de piedade, pelas condições de violação da dignidade sofrida; olhar de raiva dos que as culpabilizam pela própria condição; e o não olhar, ou seja, o olhar da indiferença. É comum para a equipe de saúde, ao abordar alguém à noite numa calçada de qualquer grande cidade, ser a primeira pessoa com quem ela conversará naquele dia.
• Variações climáticas: chuvas, ventos e principalmente o frio são fatores que geram sofrimento,
dificultam consideravelmente a vida de quem vive nas ruas e precipitam problemas de saúde.
• Cobertura limitada pelas equipes de Saúde da Família: em muitas cidades, ainda não há equipes específicas para atender esse grupo social, cuja lógica de vida e deslocamento no território é particular. Com a implantação gradual das políticas de saúde específicas para essa população, a tendência é a ampliação da cobertura e a melhora na atenção à saúde.
• Falta de tempo para buscar atendimento para o cuidado da saúde: a maior parte das pessoas que usam a rua para viver trabalha no mercado informal. Lavar e guardar carros, recolher papéis e entulhos estão entre as ocupações mais frequentes. Na lógica de ganhar a cada dia o recurso que assegura a sobrevivência, torna-se mais difícil deixar o trabalho para buscar atendimento para cuidar da saúde. A pessoa que cata papel, por exemplo, recebe de acordo com o número de quilos obtido. Abdicar de uma manhã de produção para deslocar-se à Unidade Básica de Saúde significa, para muitos, a não obtenção do recurso para alimentar-se no dia seguinte.
• Vergonha: alguns moradores de rua relatam vergonha de buscar atendimento na Unidade
Básica de Saúde por conta de sua condição de higiene ou vestimentas malcuidadas. A pesquisa do MDS revela que 19% deles já foram proibidos de entrar em estabelecimentos públicos. Deve-se
prestar especial atenção a ações de preconceito e negligência que possam ocorrer nos espaços de atenção à saúde relacionadas ao fato de o usuário viver na rua.
• Anamnese e semiologia: colher informações clínicas de quem vive nas ruas tem desafios específicos. Ao ser perguntada há quanto tempo tem uma lesão de pele, uma pessoa pode responder que não sabe porque há muito tempo não se olha no espelho. Pode confundir febre e calafrios com as baixas temperaturas do vento da noite; aparentar emagrecimento porque suas roupas são doadas e acima do seu tamanho. Quando se tenta construir a linha de tempo do relato clínico, muitas vezes nos deparamos com enormes vazios, como se nada naquele período tivesse ocorrido na vida do entrevistado. É imprescindível que o profissional de saúde reconheça a necessidade da escuta qualificada para essa população e busque apoiar, sem imposições, a construção de uma história clínica, diagnóstico e projeto terapêutico adequados ao indivíduo.
• Autocuidado: a dificuldade recorrente de acesso ao sistema de saúde epara buscar ajuda e a luta diária pela sobrevivência fazem com que muitas pessoas em situação de rua, mesmo visivelmente adoecidas, neguem estar com qualquer problema de saúde. Tal fenômeno não costuma se dar por dissimulação, mas pelo silenciamento de sinais e sintomas que, pouco a pouco, foram se incorporando àquilo que o indivíduo passou a considerar como condição de normalidade para si. Nesse momento, se o profissional de saúde perguntar a um morador de rua com tosse, febre e desnutrição como ele vai de saúde, ele responderá: “Vou bem”. Caberá então como tarefa adicional às equipes de atenção à saúde dessa população apoiar o despertar do olhar do cidadão para si mesmo como alguém que pode encontrar uma nova “normalidade“ de direito e de saúde, mais compatível com a vida e a dignidade humanas.
• Internação e alta em serviços de saúde: o percurso de uma pessoa em situação de rua\num equipamento de urgência e emergência requer especial atenção. Comumente não há qualquer
acompanhante que possa ajudar no relato do caso. A depender do serviço, pode haver tendência\de menor atenção ao usuário pelo fato de ser egresso da rua. O momento de alta também é delicado, principalmente quando cuidados médicos, como curativos, manutenção de próteses e cateteres, sejam necessários na pós-alta. Os profissionais de saúde e a assistência social da unidade veem-se confrontados com o dilema de que, por um lado, é preciso abrir vaga para um novo usuário, mas, por outro, sabe-se que a situação de rua faz com que indicações de alta a partir unicamente de critérios clínicos nem sempre dão conta da necessidade do usuário.
• Adesão ao tratamento e acompanhamento: manter rotina de tratamento ou visitas a unidades
de saúde para quem vive na rua costuma ser um desafio. A lógica de sobrevivência de se planejar um dia de cada vez atrapalha o retorno agendado à unidade. Pensar em um compromisso que ocorrerá em 15 dias é uma missão que exige esforço e, em muitos casos, será esquecida ou terá sua importância reduzida diante de sintomas que já se foram. O uso de antibiótico a cada oito horas, por exemplo, pode depender de uma gestão do tempo que a vida na rua dificulta ou não permite. Outro ponto é que a perda, a apreensão pela polícia ou o roubo dos pertences de quem mora na rua com frequência inclui remédios e prescrições.
Muito se tem discutido sobre a necessidade de desenvolver lógicas específicas para o atendimento
a essa população. Não raro encontram-se argumentos contrários cujo núcleo é a crítica à vida nas ruas. Teme-se que a implementação de ações de cuidado que reconheçam a rua como espaço de vida dessas pessoas, ainda que transitório, de algum modo estimule sua permanência nessa condição. Tal argumento é uma distorção da realidade. Um morador de rua que criou vínculos e recebeu atenção e cuidado de uma equipe de saúde na rua tem mais chance de reencontrar sua autonomia e deixar a vida nas ruas do que aquele que passivamente é aguardado nas Unidades Básicas de Saúde. Nesse sentido, é sempre útil ao profissional de saúde que lida com esse grupo social realizar o exercício mental de encadear causas de problemas de saúde originadas pelo fator “vida na rua”.
Infelizmente, a principal porta de entrada dessas pessoas no SUS são os serviços de urgência
e emergência, quando condições crônicas mal cuidadas culminam em quadros agudos. A criação
de vínculos com esse grupo social, respeitando sua autonomia, direito de escolha e evitando
juízos morais, é um desafio difícil, mas possível para trabalhadores de saúde. Para tanto, o ponto
de partida é o treinamento do olhar profissional que deve enxergar as pessoas na calçada como
portadoras dos direitos de um cidadão brasileiro, nada mais e nada menos