Os usuários de crack inscritos no programa “Braços Abertos” da prefeitura de São Paulo tiveram na manhã dessa quinta-feira (16), o primeiro dia de trabalho.
Eles limparam, com a orientação de agentes da limpeza urbana da prefeitura, ruas e praças da região da Luz, centro da capital.
No programa, os usuários trabalham 4 horas por dia e tem mais 4 horas de formação profissional e cidadã.
Em troca, eles recebem moradia em quartos de hotel da região, alimentação e remuneração equivalente a 15 reais por dia trabalhado.
O dinheiro é pago semanalmente através de um cartão que só serve para sacar.
Cada usuário recebe ao todo um salário mínimo e meio entre alimentação, moradia e remuneração.
O dinheiro é repassado pela prefeitura para a ONG parceira ”Brasil Gigante”, que gere o programa. Essa é uma forma de acelerar o programa, esclarece uma fonte da prefeitura.
Nesse primeiro dia de funcionamento, cerca de 80 inscritos começaram o trabalho numa espécie de ”piloto” do projeto.
Eles saíram pelo centro em quatro grupos de 20 pessoas.
Além dos funcionários da limpeza pública, eles foram acompanhados por um funcionário da ONG Brasil Gigante, e dois da assistência social da Prefeitura.
A tarde, por conta da forte chuva que caiu sobre a cidade durante quase todo o dia, o trabalho foi suspenso.
Quase todos os 300 barracos que tomavam a Rua Helvética já foram desmontados entre quarta, e quinta-feira a tarde, a equipe do Conversa Afiada presenciou a remoção dos últimos 37 barracos, na Alameda Dino Bueno.
Tudo transcorreu em tranquilidade.
O que mais impressiona na operação da Prefeitura, seja no depoimento dos moradores de rua, seja na fala dos agentes públicos, dos polícias e até mesmo na opinião de colegas da imprensa é o contraste com o massacre pro movido pelos governos Alckmin e Kassab que, em janeiro de 2012, tomaram a cracolândia com mais de 300 policias na base de bombas e balas de borracha.
Provocado, um repórter da Globo – que cobriu a operação da PM em 2012 – confidenciou ao editor do Conversa Afiada: “[o programa] pelo menos tenta ajudar as pessoas, é melhor do que soltar a polícia em cima…”
Parte da imprensa noticiou que usuários inscritos no programa foram “flagrados” usando crack no primeiro dia de trabalho.
Contudo, abandonar a droga não é o ponto de partida do programa e, sim, o ponto de chegada.
Tirar as pessoas da rua, recuperar a dignidade e a cidadania, para que elas tenham uma ”chance de se recuperar”, é o que prega o secretário de Saúde do município, José Filippi Jr.
O programa, que o secretário chama de “de baixa exigibilidade”, não condiciona a inscrição ao abandono da droga, até porque o usuário só larga por vontade própria, e é preciso ter muita vontade.
Cerca de 200 pessoas já foram instaladas em hotéis ali mesmo na região.
A divisão dos quartos foi combinada com os próprios usuários.
Casais e famílias ficam juntos em quarto de casal, geralmente suítes.
Homens solteiros ficam em quartos coletivos, com até cinco camas. Nesses casos, o quarto sempre tem banheiro. O mesmo se dá com as mulheres solteiras.
Entrei num dos quartos, do hotel Seoul, na esquina da Barão de Piracicaba com a Helvética, a menos de 500 metros de onde ficavam os barracos.
Passei pela recepção, subi um lance de escada até o quarto 201, no primeiro andar. Os ambientes comuns são limpos, dignos.
Apesar do número na porta ser 201, o prédio tem apenas três andares e 32 quartos, todos ocupados por 87 inscritos no programa.
O quarto 201 tem uns 15 m², cinco camas e um banheiro. Estava limpo, e tinha dois ocupantes: o senhor José, que estava dormindo e assim ficou, e um de seus colegas de quarto, Ricardo Rodrigues da Silva, de 32 anos.
Ricardo era vendedor até 2009, quando foi parar na rua.
Segundo ele, a polícia levou toda a mercadoria, os chaveirinhos de time; isqueiros; garrafas d’água; sucos; docinhos…
Pai de família, ele se desesperou, não voltou para casa. Ele já bebia, e já há alguns dias na rua, em uma das bebedeiras ele perdeu todos os documentos. E aí ele se desesperou de vez: “na rua, sem emprego e sem documento… Tava perdido mesmo”.
Sem a família, sem endereço, sem emprego e sem documentos, Ricardo conheceu o crack.
A questão dos documentos parece ser menor, mas é um divisor de águas na vida dos moradores de rua, em especial dos viciados. Uma das principais demandas deles, segundo a Secretária de Assistência Social, é a recuperação dos documentos, da cidadania formal.
Segundo Pedro Henrique, coordenador de comunicação da Secretária Municipal de Saúde, está prevista a recuperação de todos os documentos.
Braços Abertos: O programa Braços Abertos surgiu dentro da Secretaria de Saúde há cerca de três meses, quando um prédio de 2.500 m², na Região da Luz, foi destinado à Secretaria de Saúde para um trabalho com a população de rua, usuária de crack.
Eu estive nesse prédio na quinta. Na verdade, trata-se de um barracão, localizado no número 65 da Rua Helvétia. Não tiramos fotos, a pedido da Secretaria de Saúde, responsável pela instalação.
O local serve como centro comunitário para reunir a população “flutuante” da região, explica Pedro Henrique.
Eles simplesmente entram para ver televisão, para comer, tomar banho, ou simplesmente, para se proteger da chuva – assim como nós jornalistas, que só pudemos entrar por isso.
Até o nome do programa, ”Braços Abertos”, foi escolhido por eles em Assembleia.
Foi nesse local que eles conseguiram pactuar com os usuários os termos da remoção dos barracos, e a adoção do trabalho de zeladoria de praças e ruas.
Trabalho é o que muitos deles querem.
Lá no Braços Abertos conheci D. Sônia Aparecida Klein (49). Ela foi até lá porque viu na TV notícia do novo programa da prefeitura e queria inscrever o filho Edson Aparecido Medeiros, de 22 anos.
Infelizmente, ela não conseguiu. A primeira fase do programa só atenderá as 300 pessoas que estavam instalados na rua Helvétia.
Como se trata de uma experiência sem precedentes, foi preciso limitar o número de atendidos.
Segundo o Secretário de Comunicação da Prefeitura, Nunzio Briguglio Filho, houve uma tentativa similar na Holanda, mas com álcool, e não drogas – muito menos com crack.
D. Sônia lembra que é preciso olhar para a periferia: “na periferia é muito pior, eles vem para o centro para fugir do que acontece na periferia”.
Segundo a Secretaria de Saúde, é desejo da Prefeitura expandir o programa para toda cidade, através dos CAPS Álcool e Droga, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, que estão sendo montados na periferia.
Dois grandes centros já foram montados em Itaquera e São Matheus, na zona leste de São Paulo.
Os investimentos da prefeitura vêm na esteira dos repasses federais do programa ”Crack é Possível Vencer”, lançado pela presidenta Dilma em 2011.
Os repasses do programa saltaram de 126 milhões de reais em 2012, para 250 milhões em 2013.
D. Sônia foi instruída a procurar um CAPS para inscrever o filho em um dos grupos de economia criativa, que devem ser lançados no primeiro semestre desse ano, para criar oportunidades de emprego e renda para usuários de crack.
“O trabalho em zeladoria é só o primeiro passo”, explica Pedro Henrique. “Tem muita gente aqui que tem profissão; fotógrafo; eletricista; artesão; tem de tudo…”
Ricardo, que ainda estava com o uniforme de trabalho quando entrei no quarto 201, se diz satisfeito com a nova casa, com o trabalho, e esperançoso em largar o crack:
- Parei, diz ele.
- Há quanto tempo? , perguntei.
- Dois dias.
- E agora?
- Agora é trabalhar.
Murilo H. Silva, editor do Conversa Afiada