Na intervenção da Prefeitura de São Paulo na cracolândia não doeram porque foi a mais paulistana das lições de cidadania
Durante o cadastramento das pessoas que estavam morando na favelinha das Ruas Dino Bueno e Helvetia, um senhor disse: eu montei o barraco e eu quero desmontá-lo.
E foi assim que essas pessoas foram aceitando a ocupação desse território conhecido como cracolândia pelo poder local. A via pública foi liberada sem violência, sem expulsão: com diálogo e inclusão.
"Cada táuba que caía, disse Adoniran Barbosa, "doía no coração" e continua doendo a cada desocupação autoritária, expulsiva, a cada incêndio de favela.
Mas na intervenção da Prefeitura de São Paulo na cracolândia não doeram porque foi a mais paulistana das lições de cidadania.
Estão ainda na triste memória da cidade as intervenções policiais, com prisões, internações falsamente voluntárias (ou se interna ou vai preso por tráfico, dado que nossa lei não especifica a quantidade necessária para ser considerado traficante) e o retorno à zona de uso da maioria dos internados, cada vez mais arredios.
Estão ainda na triste memória da cidade as intervenções policiais, com prisões, internações falsamente voluntárias (ou se interna ou vai preso por tráfico, dado que nossa lei não especifica a quantidade necessária para ser considerado traficante) e o retorno à zona de uso da maioria dos internados, cada vez mais arredios.
Estão ainda na memória da cidade o desfile de pessoas maltrapilhas sendo tocados como gado sem rumo para provocar a "crueldade e sofrimento" que iria provocar a vontade de tratamento, e os trabalhadores de saúde tendo que desfilar para mostrar serviço.
Essas ações truculentas, além de ser violadoras de direitos humanos, atrapalharam o trabalho das equipes de saúde e de assistência, além de provocar desânimos quando pela tradicional prática do "rapa" retiravam dessas pessoas seus pertences, incluindo documento, remédios e às vezes a única foto de um ser querido.
Quanto custa para que uma pessoa com tuberculose, por exemplo, e sem moradia, adira a um tratamento!
A intervenção do dia 14 de janeiro marca um ponto de inflexão no modo como são enfrentados problemas desse tamanho: passamos de operações urbanas e concepções simplificadas para resolução de problemas complexos a ações ousadas e complexas para o enfrentamento de problemas complexos.
Em primeiro lugar porque a intervenção foi amplamente discutida com os mais diversos fóruns. Vários secretários e até o prefeito, sem escolta, foi escutar as pessoas que ali moram ou transitam.
Em segundo porque a ação está intensificando os vínculos dessas pessoas com os médicos, psicólogos, agentes sociais e agentes comunitários dos consultórios de rua que operam na região.
O mutirão do dia 14 de janeiro deflagrou um processo de integração de trabalhadores da assistência social, com os da saúde, com os guarda civis metropolitanos, com os artistas, com os trabalhadores de ONGs etc.
Em terceiro lugar porque irá intensificar o processo de construção da Rede Atenção Psicossocial paulistana, que a prefeitura achou incompleta (apesar da pressão do poder Judiciário para sua construção) e desintegrada.
A secretaria de saúde está intensificando a construção de uma rede que conta com Centros de Atenção Psicossociais - CAPS, recentemente transformaram cinco - em serviços de 24 horas, já criaram 16 unidades de Acolhimento que são casas onde as pessoas com projeto terapêutico em curso podem morar por aproximadamente 6 meses para reorganizar suas vidas.
A pesquisa sobre crack recentemente concluída pela FIOCRUZ, recentemente publicada, mostrou que 80% dos usuários pesquisados nas zonas de uso são negros ou pardos, que 80% não chegaram ao ensino médio, que 50% estiveram presos e que em média usam há mais de oito anos.
O crack não mata imediatamente, como querem fazer crer. É um produto inerte que não se propaga por si mesmo como uma peste epidêmica, mas um organizador de vidas violentadas, não preparadas para viver em sociedade e que são alcançadas pelo mercado (negro) que organiza suas vidas.
A operação não tem nada de ingênua, como alguns acreditam, pois não será dando o que eles não têm – o que é impossível – que as coisas mudarão. As pessoas que conduzem o processo sabem que não será obrigando nem dando sermão que gerarão nesses usuários uma vontade de mudança. Daí a baixa exigência do serviço.
O programa "Braços Abertos" que está na rua Helvétia é um espaço paradoxal, um pouco serviço público, um pouco rua que ampliou e intensificou o vínculo com os usuários, ali foram criados grupos musicais e outras iniciativas culturais, fora os cuidados com a saúde.
Ou seja, a menor exigência maior complexidade.
As pessoas que operam na região esperarão conflitos, recaídas, novas demandas e irão se surpreender com a potencialidade de muitos deles.
O mutirão tem apoio do Ministério da Saúde, de vários organismos de direitos humanos, de voluntários e recebe o apoio crítico dos movimentos da população em situação de rua.
No dia 15 de passagem pelos Braços Abertos, encontrei o secretário de Segurança Urbana, Roberto Porto, a coordenadora de Saúde Mental, Myres Cavalcanti, e outros dirigentes municipais. Paulo Puccini, secretário adjunto de Saúde, estava com um sorriso a flor de lábios. Ele disse: você já viu eles saírem do hotel de banho tomado e roupas trocadas?
Autoridade, destemor e ousadia do prefeito e sua equipe. Eles estão propiciando um belo presente para o próximo 25 de janeiro: encontrar um modo, baseado em experiências eficazes do mundo contemporâneo, mas autenticamente paulistano de enfrentar um dos sérios problemas da cidade.