Texto de Patricia Guedes.
Recentemente, na novela da Rede Globo ‘Amor à Vida’, a personagem autista Linda e o advogado Rafael se beijaram. A trama de romance entre os dois levantou um debate sobre as possibilidades de relacionamentos amorosos para pessoas autistas. Dois textos foram bem divulgados esses dias: E a moça autista da novela, hein??? de Aninha Arantes e Amor à vida: Linda e Rafael, amor ou abuso de incapaz? de Verinha Dias. Há também matérias com opiniões de mães de autistas. Meu principal receio em relação a essa discussão é a maneira como enxergamos uma pessoa diferente da maioria. Uma pessoa com autismo enfrenta dificuldades para lidar com o que acreditamos ser o processo de desenvolvimento de qualquer ser humano comum. É habitual pensarmos que pessoas que tem limitações em nossa sociedade são menos humanas, menos aptas, incapazes de gerir suas próprias vidas, dependentes, desamparadas, assexuadas. Porém, como em diversos outros exemplos, é importante lembrar que cada caso é um caso e não podemos taxar que uma pessoa autista jamais poderia se relacionar amorosamente, até mesmo com uma pessoa que não é autista. A novela apresenta alguns equívocos desde o começo. Primeiro: todo o autismo jogado dentro de um saco só. Linda representa uma pessoa com autismo de uma maneira distante da realidade. O autismo é um transtorno bastante diverso, com muitas manifestações e possibilidades, a personagem é apenas uma dentre vários possíveis tipos existentes. A novela ajuda nessa percepção? Não. Mas, até aqui, ‘Amor à Vida’ tem se equivocado em MILHARES de coisas. A ridicularização da personagem Perséfone e a gordofobia explícita são bons exemplos. O autor Walcyr Carrasco, ao tentar cumprir uma função social de visibilidade, tem pecado enormemente com os conceitos que apresenta. Ao mesmo tempo, não seria demais exigir de uma peça de entretenimento tão subjetiva quanto uma novela uma carga tão alta de responsabilidade informativa? Não é papel da novela informar, talvez só dar visibilidade. Claro que isso tem seus efeitos colaterais (como as pessoas gordas sendo mais discriminadas e ridicularizadas, como já vimos) e estes devem ser pontuados, observados e combatidos sempre que necessário. Mas, no caso de uma diferença social, pode ser um pontapé para o início de várias discussões, como é o caso do autismo e o silenciamento sobre inclusão. Podemos, inclusive, fazer outras perguntas: por que não se buscou uma atriz com autismo? Será que não existem atrizes autistas com capacidade de representar o papel?
Rafael (Rainer Cadete) e Linda (Bruna Linzmeyer) em cena da novela da Rede Globo ‘Amor à Vida’. Foto: Rede Globo/Divulgação.
Outro fato intrigante é o tabu que envolve a sexualidade de uma pessoa com autismo. Infelizmente, a trama é extremamente romantizada e maniqueísta, com a personagem da mãe sendo a vilã, em oposição ao pai, que seria o bonzinho que apoia o relacionamento amoroso. Porém, existe um incômodo com o fato de a personagem ser uma incapaz (termo mais infeliz que esse não há) e não ter condições de decidir pela própria vida, inclusive sexual e afetivamente. Há o argumento de que a relação que ela tem com o rapaz é desigual e pressupõe um poder, por isso a intervenção da mãe. Mas, a relação que existe entre Linda e a mãe também não pressupõe poder? A mãe é adulta e teve desenvolvimento típico, assim como Rafael, namorado de Linda. Ao determinar quais relacionamentos são adequados ou não para a filha, essa mãe também não está exercendo poder? Negar o exercício da sexualidade a uma pessoa pode ser igualmente violento e abusivo.Então, se entendemos a tutela em si como uma relação necessariamente de poder, qual é a questão? É a personalidade de Rafael? Mas, se envolver com uma pessoa que tem falhas de caráter e pode ser uma abusadora não deveria ser uma preocupação de qualquer pessoa, independente de sua condição mental? A negação da sexualidade dos ditos incapazes (crianças, pessoas com deficiência, pessoas com autismo, etc.) ou a restrição de seus relacionamentos amorosos apenas com pessoas que tenham a mesma condição é um retrocesso no debate e colabora para que o assunto permaneça um tabu. E, por favor, não estou aqui defendendo a pedofilia. Mas, não podemos continuar com essa ideia idílica de que os ditos incapazes são seres assexuados e sem nenhum desejo sexual. É inegável a questão concreta da violência capacitista, com abusos dirigidos a pessoas com autismo de uma maneira geral e que é muito pertinente. As estatísticas de violência dirigidas às pessoas autistas ainda são muito imprecisas, especialmente por causa desse tipo de raciocínio, de que autistas não possuem capacidade de se responsabilizar pelos seus atos, nem por uma denúncia de abuso. É comum que estas pessoas sejam desacreditadas no momento de uma denúncia, até mesmo entre os familiares, já que muitos casos de violência envolvem familiares, tutores e cuidadores. Porém, dizer que uma pessoa não pode tomar decisões é muito grave, gravíssimo. É negar direitos políticos, sociais e individuais a ela. Não esqueçamos que, até pouco tempo, o mesmo parâmetro era adotado para mulheres e negros. Então, no mínimo, há que se ter um pouco de cautela antes de determinar o que é autonomia, quem deve ter direito a ela e até onde ela vai. Sabemos muito pouco sobre o funcionamento de nossas capacidades mentais. Muito se diz sobre o mundo paralelo em que os autistas vivem, mas pouco se sabe sobre ele, porque insistimos em excluir de nosso convívio quem é diferente, a enxergá-los como “coitados” e “dependentes” que nunca poderão ter uma vida plena. Temos que encarar o autismo como uma condição cheia de possibilidades e manifestações diversas. E, por mais que tenhamos atenção com pessoas que necessitam de cuidados específicos, precisamos também respeitá-las, possibilitar ferramentas mínimas para autonomia e desenvolvimento. Esse compromisso não pode ser só da família, mas obrigatoriamente da sociedade. |
Pretendemos com este veículo fortalecer a participação social, o Conselho Gestor de Saúde do Distrito de Saúde de Saúde de Vila Maria/ Vila Guilherme e o SUS.