sábado, 28 de setembro de 2013

Mulheres ou meninas: somos todas clandestinas

Surpreendida pela velocidade e imponência do seu próprio crescimento; preocupada com os movimentos que observa ao seu redor; percebendo as mensagens enviadas a ela e às outras tantas outras — ela, a menina, a mulher, a adolescente decide ser dona de si e do próprio corpo.

Ela decide muito cedo não ceder às seduções do patriarcado – nem aos príncipes encantados, nem à beleza do amor, nem ao “paraíso” da maternidade. É nesse momento, muito cedo, que ela decide que vai fazer com o corpo o que quiser – o que significa ter prazer quando quiser e expurgar de si mesma aquilo que não lhe pertence. Mas ela também sabe do peso que é ser o que é. Apesar de tão jovem, ela já sente o peso de ser mulher. Então ela decide evitar mais um peso. Porque, apesar de jovem, ela se conhece bem. E sabe que não hesitaria em fazê-lo. Então, sua saída é prevenir. E previne. Ela evita. Ela evita uma dor que não tem, bem, um nome ainda.
Ela evita também porque sabe que um filho seu seria somente seu. Evita porque sabe que a realidade escancara que os filhos e as filhas pertencem às mulheres, às meninas, as quais acabam sendo por eles e elas as únicas responsáveis. Diziam-lhe que era preciso dois para conceber uma criança — mas parecia que só bastava uma. Ela. Uma. Então, o que mais poderia fazer? Ela evitaria. Porque já carregava peso demais.
A história dessa adolescente poderia ser lida por aquelas e aqueles que defendem a criminalização do aborto como mais um argumento para considerá-lo crime. Afinal, diriam: a mulher ou a menina que não quer ter filhos tem a obrigação de evitá-los. Se desliza, se escorrega, se ignora as maneiras mais eficazes de evitar uma gravidez (e, com o Estatuto do Nascituro, se tem a “má sorte” de ser abusada sexualmente), nada mais justo do que arcar com as consequências do seu descuido. A consequência, é claro, é levar até o fim uma gravidez indesejada, não importando muito o que e quanto isso lhe custe.
Se, por outro lado, ela desafia a lei da sociedade e “mata o bebê” (que nem é, bem, um bebê, mas deixemos de lado, por hora, esse detalhe), ela precisa ser vista como a criminosa que é. Como uma assassina. E precisa responder na justiça pelo crime de ter retirado da sociedade o direito de receber mais um componente. (Não importando muito também que lugares esse novo sujeito poderia ocupar).
Assim, o poder de decisão para evitar ou não evitar está colocado exclusivamente sobre os ombros das mulheres, das meninas. Mas é claro! — algumas e alguns poderiam responder — é porque são as mulheres e as meninas que tem o corpo capaz de abrigar e de alimentar o embrião (que, para algumas mulheres tornar-se-á, mesmo, um parasita). Entretanto, se nos voltamos para o desejo dessas mulheres e dessas meninas, a regra já não é a mesma. Porque se elas tentarem (re)afirmar o seu poder de decisão e o caráter imprescindível do corpo feminino para a gestação contrariando as acepções da sociedade patriarcal, então elas deverão ser punidas. Ou melhor, elas precisarão ser punidas. Valendo lembrar que essa punição pode vir através da submissão ao risco de morrer por tentar realizar um aborto clandestino; através da manutenção de uma gestação e de uma maternidade forçadas; pelo enfrentamento de uma culpa por ter “matado” um outro ser humano; ou mesmo pela prisão. Ora, repare que uma mulher ou uma menina que realmente não deseja ser mãe será punida de qualquer maneira! Tendo o filho ou não tendo o filho. Porque, ora bolas, os filhos (do mundo!) são responsabilidade das mulheres!
É interessante observar, todavia, que em todo esse discurso que criminaliza o desejo real das mulheres e meninas, os homens e os meninos simplesmente somem de cena. Onde estão os parceiros daquelas que engravidaram enquanto estas estão sendo punidas? Onde estão os parceiros quando é feita a decisão pelo aborto, no momento do aborto e quando esses abortos são revelados à justiça? Onde estão os “homens” nesse momento? E onde estão os homens, os “parceiros”, quando essas mulheres e meninas se sentem obrigadas a ter esses filhos e filhas, podendo apenas exercer um papel insuficiente de cuidadoras? Onde estão os cuidadores? Onde está o homem que engravidou a mulher presa por abortar? Não é preciso “dois” para fazer um filho?
Ora, o que vemos aqui são contradições que mantém as relações de gênero como sempre foram! Deverão ser sempre as mulheres, as meninas, as únicas responsáveis por tudo. Serão aquelas que serão penalizadas, criminalizadas, queimadas de qualquer maneira, independentemente da escolha que façam. E ainda serão penalizadas pela própria atitude de fazer uma escolha. Interessante, não? Porque enquanto isso os homens, os meninos não são responsabilizados por quaisquer de suas atitudes. Não se tornam responsáveis pela gravidez, não se tornam responsáveis pelo aborto, não se tornam responsáveis pelo abuso… E, pior, não são responsáveis pelas crianças do mundo — como acontece com as mulheres que devem, não só parir como também criar, cuidar dos seus filhos e filhas e dos filhos e filhas dos homens, que simplesmente são retirados de cena pelo patriarcado.
É claro que as mulheres e meninas não são apenas vítimas de todo esse processo. Todos os dias, elas enfrentam o patriarcado criando soluções diferentes e ousadas – muitas vezes, arriscadas – para poder decidir sobre suas próprias vidas. Prova disso são os abortos clandestinos que continuam sendo feitos todos os dias, por parte de mulheres e meninas mais ou menos privilegiadas. Prova disso é a menina que, tendo recursos para tal, decidiu se empenhar em evitar uma gravidez por estar ciente de que apenas ela teria de lidar com isso. Entretanto, os valores sexistas e machistas da sociedade patriarcal não impedem a morte de uma mulher a cada dois dias por aborto inseguro no Brasil. Nem poupam as adolescentes, as meninas, do peso de serem as únicas responsáveis por uma gravidez indesejada, mesmo aquelas que se encontram em condição de vulnerabilidade social.
Em meio às discussões sobre o aborto, vemos posições que decidem de uma maneira surpreendentemente simples que as mulheres não podem, não devem abortar — e pronto. Muitas vezes, dizem do aborto como se fosse uma coisa muito distante da sua realidade, praticada apenas por mulheres indignas demais para receber o amor dos homens, o amor de Deus. É claro que o aborto é uma questão ética delicada. Mas, perceba, é no mínimo 1 milhão o número de abortos praticados por ano só no Brasil. Até os 40 anos, mais de 1 em cada cinco mulheres já praticaram aborto nesse país. O que nos leva a crer que, você que me lê, com certeza conhece pelo menos uma mulher que já abortou. Não é uma realidade tão distante assim. Ademais, a religião das mulheres parece não fazer tanta diferença no momento de decidir pelo aborto. Isso quer dizer que católicas abortam, evangélicas abortam, espíritas, mulheres de religião de matriz africana e tantas outras “crentes em alguma coisa” abortam no Brasil.
E meninas, meninas também abortam. Sozinhas, com ajuda, não importa, elas abortam. Às vezes abortam porque fizeram sexo eventual quando não estavam esperando por ele –– então não se prepararam levando a camisinha ou tomando o anticoncepcional. Os meninos? Os parceiros? Ninguém sabe deles! Porque a sociedade autorizou que eles não se sentissem responsáveis por isso! Isso sem mencionar as meninas que são estupradas todos os dias…! E que, com o Estatuto do Nascituro, estariam obrigadas a, não só manter a gravidez do estuprador, como também assumir uma maternidade compulsória. Mais uma maternidade compulsória. Porque, mais uma vez, precisamos ser mães das e dos nossos; das e dos deles. Enquanto desse lado, sobre responsabilidade… Do outro simplesmente falta!
É por isso que tantos movimentos de mulheres utilizam tanto a frase: “eu aborto, tu abortas, somos todas clandestinas”. É porque são mulheres demais que abortam para fingirmos que estamos tratando de uma questão particular. Seja em clínicas de luxo no Brasil ou no exterior, seja com a ajuda de desconhecidas com pouca formação, com a ajuda de amigas ou sozinhas, as mulheres, as meninas, abortam. Sãomulheres famosas, são mulheres desconhecidas; são cantoras, atrizes, jornalistas, psicólogas, empregadas domésticas, metalúrgicas; pretas, brancas, indígenas; ricas, pobres; religiosas e ateias… É claro que as que têm menos recursos morrem mais. E morrem da pior maneira possível, o que deve ser uma questão para toda a sociedade e para o Estado. Mas o fato é que – leia bem: – SÃO TODAS CLANDESTINAS. C L A N D E S T I N A S.
Se tantas mulheres abortam mesmo sabendo que estão em desacordo com a lei, que podem ser criminalmente punidas e que podem morrer de uma maneira dolorosa, avaliada socialmente como “indigna”, vale a pena perguntar o que há de comum entre todas essas mulheres. Mulheres – sujeitos políticos oprimidos por uma hierarquia que é imposta de todos os lados…! Mulheres – aquelas as quais a ordem precisa enganar e seduzir, todos os dias, para fazê-las pensar que são livres… quando não são. Acredito realmente que parte da resposta para essa pergunta seja, mesmo, esta: as mulheres não são livres. E para que sejam, no mundo em que vivemos, elas precisam ser clandestinas. Então, elas precisam seguir sendo clandestinas quando disso depende a afirmação de sua própria liberdade.
O assunto poderia render ainda muita discussão dentro desse próprio texto. E poderia trazer ainda outras contradições que permeiam ambos os posicionamentos. É que o aborto tem ainda a especificidade de ser um tema que envolve a ética. E, como toda encruzilhada ética, ele envolve diversas contradições e movimentos sem fim. Mas vale a pena encerrar o texto reforçando que o corpo é das mulheres e o peso de qualquer escolha recai, mesmo, sobre elas. E somente sobre elas. Oxalá, seja possível um dia convivermos em sociedade de maneira que toda pessoa possa assumir a parcela de responsabilidade que lhe cabe – sem que isso, entretanto, mate a vida e a liberdade das mulheres e meninas.
Jully Soares.
Jully Soares.
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Jully Soares é jovem pensadora e militante feminista, negra e bissexual. Escreve no blog Inspiração Política & Literária.