terça-feira, 10 de setembro de 2013

O descompasso do SUS em debate no I FBDHSM

Diferentes visões acerca do estado atual do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular no campo da saúde mental, fizeram da mesa Direitos Humanos, o SUS e a Reforma Psiquiátrica uma das mais enriquecedoras do I Fórum Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental, mesmo em pleno feriado do Sete de Setembro.

Os presentes puderam ouvir e aprender com importantes figuras do debate público e político sobre a saúde: os professores Nelson Rodrigues dos Santos, da Unicamp e da direção do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (Cebes) e do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa); Ligia Bahia, da UFRJ e do Conselho diretor da Abrasco, e o psicanalista Antonio Lancetti. A coordenação foi de Paulo Amarante, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

Uma detalhada apresentação sobre o modelo de atenção fundador do SUS foi o ponto de partida da apresentação de Nelson dos Santos. O professor apontou as manobras utilizadas por governos e grupos privados para desarticulação e mau funcionamento do modelo. “Pensado a partir das prerrogativas da população, dos profissionais de saúde, dos prestadores de serviço e, por último, dos fabricantes e fornecedores, o que vemos hoje é a inversão desse modelo, funcionando de baixo para cima e constituindo um modelo de oferta de serviços, que nada tem de atenção em saúde.”


Ao destacar dados como a pressão dos fabricantes e fornecedores por sistemas viciados de compras e aquisições, os mecanismos dos planos privados de saúde, que recebem subvenção de 30% do Ministério de Saúde, garantindo-lhes uma faixa de lucro de 158%, e as políticas de gestão de mão de obra, com cerca 70% da força de trabalho vinculada por meio de contratos precarizados, Nelson dos Santos vaticinou: “Este nosso modelo, criado a partir das políticas universalistas europeias, deu seus primeiros passos, mas logo começou a ser atacado, resultando em baixa cobertura e baixa eficiência. Tornou-se, assim, o SUS atual, subfinanciado e destinado aos pobres, com quem a sociedade pouco se preocupa”. O professor ainda frisou ver, dentro das esferas públicas, uma grande articulação que apelidou de ‘anti-SUS’. “Isso mexe no coração da sociedade que tanto lutou para um sistema digno e universalista.”

Ligia Bahia seguiu a estrutura de raciocínio de Nelson dos Santos e contextualizou as mudanças políticas vividas pela sociedade ocidental que possibilitaram o esvaziamento do modelo. “Apesar do nome, o nosso estado de bem-estar social é, na verdade, um estado de mal-estar social. Houve uma melhoria ao acesso de bens de consumo, mas continuamos subsidiando a indústria automobilística para matar mais gente; salvamos crianças de desnutrição para depois morrerem de homicídios advindos da violência. Espero, sinceramente, ver nas ruas que este Sete de Setembro nos ajude a conquistar a independência do pacto de mal-estar social a que submetem a sociedade brasileira.”

A professora comentou ainda a indicação de Elano Figueiredo, advogado vinculado aos planos de saúde, à diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “É mais um diretor que vem do setor privado, um escândalo digno do nome 'Elanogate', como estamos chamando. Pressionamos a Comissão de Ética da Presidência da República, pois não dá para colocar a raposa tomando conta do galinheiro.”

Ao finalizar sua fala, Ligia Bahia lembrou que é papel de todos os profissionais da saúde questionarem a lógica do cumprimento de metas, consultas e internações - segundo ela, “um modelo que não permite a emancipação, nos achata, nos torna chatos e nos infelicita” - e destacou que é possível agir no sentido contrário ao ‘estado de mal-estar social’. “Nossas relações com o aparato da justiça têm de ser mais estreitas, pois é uma ferramenta para derrubar o cinismo e a maldade que vemos. Temos de estar mais juntos como estamos aqui hoje e, quando não for possível, sermos mais rápidos na nossa comunicação e no trabalho em rede.”

Antonio Lancetti iniciou sua participação contrapondo as análises anteriores e destacando os avanços conseguidos no campo da saúde mental dentro do Sistema Único de Saúde. “Acredito que o SUS está vivo de diversas maneiras. Conseguimos a desativação de mais de 160 mil leitos de hospícios e garantimos os serviços residenciais terapêuticos, nos quais finalmente conseguimos tratar a esquizofrenia. Com todas as dificuldades que temos, foi o SUS que diminuiu as mortalidades e assegurou tantos outros avanços.” O psicanalista afirmou ainda que é importante reconhecer o trabalho da Coordenação de Saúde Mental do Ministério, “que tem resistido à dubiedade do governo Dilma”.

Ao avaliar a conjuntura atual, Antonio Lancetti destacou que a preocupação com as manifestações abriu um espaço para a rearticulação das ações sobre a epidemia do crack, antes massacradas pela mídia, e considerou uma “traição” a aprovação da lei da internação compulsória. “Têm sido criados territórios de exceção, fazendo desfilar usuários como se fossem bandidos. Naturalizou-se a ideia de que tem de se internar e prender. Vemos a força de verdadeiras subjetividades drogadas, o que inclui todo o ciclo da droga na sociedade contemporânea, os repressores, os vendedores e também os terapeutas.”

Ao final, os três palestrantes frisaram que é necessária a luta por “um SUS para chamar de meu”, que reúna coragem para agir na contra-hegemonia e faça do debate político uma verdadeira reserva ética da sociedade. “No momento da falta das paixões, são eventos como este que nos alimentam a seguir e manter a chama acesa”, destacou Lancetti, disparando uma forte salva de palmas de todos os presentes.

(*Bruno C. Dias é jornalista da Abrasco)