Sou da geração que participou da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986: marco teórico e político que permitiu a criação do SUS.
Sabíamos que o SUS só seria viável se agregasse ao modelo médico tradicional os conceitos de saúde comunitária, saúde de família, equipe multiprofissional, prevenção, saúde ocupacional, fatores de risco, poluição ambiental, educação para a saúde, nutrição, e muitas outras disciplinas ausentes do currículo das escolas médicas. Há aproximadamente 30 anos esta visão mais abrangente vem sendo discutida e seus instrumentos construídos e aprimorados.
O programa Mais Médicos nos faz recuar no tempo. Seria perfeito e não seria necessário importar médicos se a Bolsa-médico fosse a Bolsa-equipe-de-saúde: R$10.000,00 disponibilizados igualitariamente para a equipe que planificaria suas ações conforme as necessidades de cada região.
Penso que foi um erro desrespeitar o marco simbólico que sustenta a construção de nossa ciência médica, edificada com seriedade e segurança. Foi arrogância não querer dialogar com representantes dos Conselhos, Sindicatos e Escolas médicas. Criou uma fratura em nosso sistema simbólico, quer dizer, temos agora vários tipos de médicos. A palavra Médico, tão respeitada, perdeu significado pela multiplicação dos significantes. E a cisão dentro da equipe , que estava ultrapassada, reascendeu-se entre os médicos brasileiros e os estrangeiros.
Os médicos cubanos não vão nos fazer mal, são bons agentes de saúde, seria um doloroso erro hostilizá-los. É certo que nossa medicina tem uma evolução, desde a origem, diferente da medicina cubana: nossa medicina é liberal-iluminista, filha das ciências exatas. A medicina cubana é socialista, filha das ciências humanas. Ambas tem vantagens e desvantagens, temos de aprender com eles, eles tem o que aprender conosco.
Em um momento particularmente otimista para a nossa medicina comunitária, onde ações tidas como exclusivas do médico podem ser exercidas por outros profissionais da equipe, o que amplia a força da equipe de saúde e aumenta a resolutividade das unidades básicas, temos de enfrentar um programa que recupera o modelo da supremacia médica e recomeçamos a debater competências.
Gostaria de pensar que na qualidade de trabalhadores e sonhadores do SUS, com seu ideário de Universalidade, Integralidade, Equidade, Descentralização e Participação, tão caro ao nosso imaginário, vamos receber bem nossos colegas ultrapassando as questões simbólicas. Considerando-as, mas sem se deixar cegar por elas.
É princípio da medicina mas serve para todo e qualquer trabalhador da saúde: Primo non nocere, em primeiro lugar não causar dano. Isso significa contribuir para fazer da equipe um produto gregário, democrático onde convivem desejos e saberes distintos combinados para um objetivo comum. Não é fácil, mas vale o esforço.