domingo, 2 de junho de 2013

Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS?

Publicado em: 31/05/2013 - CEBES
Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS?
Ana Luiza d'Ávila Viana* e Cristiani Vieira Machado**, membros da Plataforma Política Social via Jornal do Brasil 

No capitalismo qual é o papel do Estado Social? Reafirmar o compromisso de extensão dos direitos sociais e evitar a privatização, entendida como promoção dos padrões individualizantes do mercado de consumo. 

Para isso são necessárias inúmeras políticas públicas de fomento à construção de instituições produtoras e reguladoras de serviços sociais, de regras fiscais equânimes, de promoção e incentivo à ocupação e à capacitação da força de trabalho, de melhorias e instalação de intensa fluidez urbana, de garantia habitacional, entre outras.

O Estado Social atua de forma diminuir os impactos do mercado na criação voraz de desigualdades, o que somente a política e a criação de estruturas voltadas para o interesse coletivo podem fazer, promovendo o princípio da comunalidade endossada, do seguro coletivo contra o infortúnio individual e suas consequências, como diria Zygmunt Bauman.


Mais do que isso, o Estado Social olha o futuro no sentido de criar uma sociedade de semelhantes, promovendo políticas e regras voltadas para igualdade e a diminuição das diferenças de partida (desde o nascimento), assegurando maiores chances para aqueles não portadores de ativos (na forma de renda, propriedades, capital social).

São numerosas as explicações para o surgimento do Estado Social no século XX, porém o certo é que a política foi crucial para conter o avanço do mercado autorregulado e a ausência de mecanismos de proteção social em todos os países.

No Brasil foi construído um Estado Social voltado para o mercado de trabalho, de forma a cobrir infortúnios gerados pelo assalariamento, no processo de industrialização tardia, assentado no êxodo rural e na imigração. A intensa urbanização dos anos iniciais do processo de industrialização, sem políticas públicas mais abrangentes, colocou uma imensa massa de assalariados recebendo benefícios diferenciados conforme a sua inserção laboral, convivendo (ainda) com formas pré-modernas de proteção social, como aquela ofertada pelas ordens religiosas e associações comunitárias de todo tipo. Dessa forma, a marca histórica do Estado Social brasileiro é a segmentação (urbano/rural; trabalho formal/informal), a diferenciação dos benefícios e o paternalismo político e religioso dos sertões do nosso país.

Tardiamente, na crise e no processo de democratização dos anos 80 do século XX, é que uma política para a Seguridade Social foi pensada e endossada pela sociedade em meio a uma discussão sobre novos padrões de desenvolvimento, justiça social e liberdade, palavras sempre ouvidas nos grandes comícios das “Diretas Já” (realizados em São Paulo, Rio de Janeiro Belo Horizonte e em outras cidades brasileiras). Porém a trajetória política do país se distanciou dessas insígnias, quando uma nova ordem conservadora quis reverter todas as conquistas do período de capitalismo regulado e de alargamento dos direitos sociais no mundo, com forte repercussão nos países emergentes.

Como construir um novo Estado Social sobre as bases da solidariedade, da justiça social e da responsabilização coletiva pelos riscos individuais, em um momento de questionamento profundo do papel do Estado e de políticas públicas voltadas para reversão do quadro de desigualdades inerentes ao processo de acumulação capitalista?

No último decênio do século passado, a tônica dos discursos conservadores (mais do que liberais) foi o forte questionamento do Estado-protetor, burocrático e paternalista, assentado numa cultura de dependência assistencial e em uma estrutura tradicional de família. Criticou-se o excesso de taxação e de igualitarismo promovido pelo Estado, com efeitos negativos sobre o plano da eficiência, o estímulo empreendedor, o estímulo ao trabalho e a liberdade de escolha.

Esse questionamento repercutiu fortemente em todos os países e provocou reformas institucionais que, de maneira geral, iniciaram ou acentuaram processos de privatização, que buscam transferir, para os ombros dos indivíduos, parcelas crescentes da cobertura dos riscos sociais e o estímulo à participação privada (com e sem fins de lucro) na oferta e gerenciamento dos serviços sociais.

Porém, foi nos países fora do centro econômico mundial que a onda conservadora mais se impregnou e teve efeitos deletérios. Isso se deu pela incipiente base do Estado Social, pela crise econômica que assolou vários desses países no final do século, pela estreita base tributária, pela frágil cultura de solidariedade e ethos público, pela escassez de partidos de cunho socialista e social democrata, por um perfil econômico agrário baseado na grande propriedade, pela pouca proteção ao trabalho, entre outros fatores.

Mesmo assim, foi possível construir ou adensar políticas de proteção em algumas nações, com destaque para os países emergentes da Ásia, e implantar políticas redistributivas na América Latina, o que gerou o fortalecimento da assistência social no tripé da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência).

Essa forte vocação para a área assistencial se explica também pelo tipo de desenvolvimento econômico (pós 2004) das economias sul americanas, com forte participação do consumo privado no PIB, expansão do setor de serviços, fraco desempenho da indústria local e crescimento das exportações de commodities de diferentes tipos (minério, petróleo, carne, produtos agrícolas).

Tal padrão de desenvolvimento necessita incorporar massas crescentes ao mercado de consumo, o que impõe melhoria e redistribuição de renda (via trabalho ou transferências), desoneração fiscal, aumento progressivo de salário, investimentos em serviços sociais de atendimento pontual e voltados para problemas e populações específicas.

Nessa perspectiva, outros tipos de políticas sociais, como a de saúde, por exemplo, se justificam mais pelo incentivo econômico à produção de insumos, equipamento, enfim, ao complexo da cadeia produtiva da saúde, do que pela instituição de um sistema com ações e serviços igualitários e atendimento equânime, eficiente e de qualidade a todos os cidadãos.

No Brasil, a criação e a expansão do SUS nesses últimos 25 anos se deu justamente em meio a concepções distintas sobre o Estado Social. De um lado, assentou-se em uma proposta abrangente de Seguridade, inscrita na Constituição de 1988, baseada em um desenho integrado e universalista de políticas sociais, e sustentado por intensa mobilização de atores políticos setoriais. De outro, iniciou-se nos anos 1990 em um contexto de predomínio de uma visão negativa do Estado; para se defrontar, a partir dos anos 2000, com uma retomada da valorização do Estado, mas sob um modelo de articulação entre o econômico e o social que confere pouco espaço às políticas sociais universais.  

Mesmo em um cenário adverso, o SUS propiciou algumas mudanças importantes. Em primeiro lugar, houve a criação de uma estrutura de serviços descentralizada, calcada no desenho federalista, favorecendo a criação de uma base de apoio nos políticos e outros atores locais e regionais. O processo de descentralização ocorreu com progressiva redução da participação federal no financiamento, e maior assunção subnacional dos gastos, dos arranjos assistenciais, da gestão do mix público-privado e do padrão e extensão de cobertura.

Em segundo lugar, ocorreu uma expressiva expansão dos serviços de atenção básica em saúde no território nacional, propiciada por amplo consenso internacional e nacional em torno do tema, com repercussões positivas para o acesso e melhoria de alguns indicadores de saúde da população. No entanto, pouco investimento de forte conteúdo tecnológico foi feito no período, e os serviços privados na área diagnóstica, terapêutica e hospitalar de alta complexidade se expandiram, principalmente nos maiores centros urbanos.

Assim, outro processo se alastrou: o da intensa participação privada na assistência à saúde, de diferentes formas: na oferta de serviços; na oferta de tecnologias de ponta para todo tipo de procedimentos médicos; na intermediação financeira no mercado de saúde; no estímulo à conformação de grandes grupos capitalistas na área, envolvendo serviços, finanças e indústria, de caráter multinacional. Tal expansão privada contou com forte financiamento e subsídio estatal, o que em parte explica um gasto privado maior que o público na área da saúde no Brasil e um mercado de saúde de natureza privada operando fora e dentro do SUS.

Na ótica econômica, o crescimento do segmento privado via empresas que comercializam planos e seguros de saúde tem uma fácil explicação, pois há um gatilho acionado para a expansão toda vez que cresce o emprego formal e há expansão econômica, como ocorreu nos anos mais recentes. O mesmo gatilho funciona de forma muito mais leve no SUS, dado o atrelamento da elevação do financiamento via Tesouro segundo a variação nominal do PIB. Os gatilhos são diferentes em intensidade e impacto e podem explicar os movimentos de expansão ou de retração no SUS e no segmento privado.

Na ótica da política, o crescimento desse segmento também pode ser explicado pelo caráter e sentido da ação estatal, em face dos numerosos incentivos e do modelo regulatório adotado no período do SUS. Além de implantada tardiamente (a partir de 1998/1999), a regulação estatal operada por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar tem servido mais à organização dos mercados e à (limitada) regulamentação de relações contratuais entre empresas e clientes, o que constitui atividade típica de qualquer Estado capitalista, sem que signifique a existência de um Estado Social.   

 A privatização ocorre com o avanço da participação privada na oferta e gerenciamento de serviços de saúde (hospitais, ambulatórios, laboratórios) componentes da base do SUS (via contratos, convênios com instituições filantrópicas, lucrativas, Organizações Sociais, entre outras), e pelo peso do setor privado operado via empresas de planos e seguros (com quase 50 milhões de usuários e faturamento da ordem de R$ 80 bilhões), ambos contando com financiamento público (na forma de impostos, isenções e desonerações fiscais e subsídios diversos, inclusive ao crédito).

Na verdade ocorre um processo combinado de desmercantilização do acesso (via SUS pela gratuidade ou via planos pela isenção fiscal ilimitada), acelerada mercantilização da oferta (via expansão dos serviços privados, principalmente na área de maior densidade tecnológica) e, finalmente, estímulo crescente à capitalização e formação de grandes conglomerados oligopolistas que englobam serviços, finanças e indústria.  Esse é, aliás, o padrão observado em outras áreas – alimentos, energia, armamentos – como forma de controlar os riscos inerentes ao processo de crescimento exponencial dos ativos financeiros (que atingiram, em 2007, a soma de quase US$ 200 trilhões, frente a uma riqueza real de quase US$ 60 trilhões, segundo estimativas do Mcklinsey Global Institute).

Dessa forma, o sistema público e o segmento privado concorrem pelo financiamento público, dependem da compra de serviços privados para dar cobertura aos seus segurados, são reféns da indústria internacionalizada do complexo produtivo e, portanto, possuem pouca margem de manobra para controlar custos e regular os provedores.

Essa coexistência têm efeitos deletérios do ponto de vista da eficiência geral do sistema de saúde (tendência à incorporação tecnológica e custos crescentes, sob-restrito controle; busca de lucros pelas empresas); e da equidade, visto que perpetua as desigualdades no acesso, utilização e qualidade dos serviços entre as pessoas, segundo sua capacidade de pagamento e de usufruto da atenção disponível nos distintos segmentos. Tende ainda a colocar os serviços públicos em situação de complementariedade aos privados, nos casos de “clientes” que não interessam aos mercados (idosos e doentes crônicos, que requerem tratamentos de alto custo).

O padrão de desenvolvimento fortemente assentado no consumo e nas exportações, que é a marca desse novo período, favorece e necessita de políticas voltadas para inserção de grandes massas no mercado de consumo e o estímulo à conformação de conglomerados para fazer face à concorrência internacional dessa fase da globalização.

As medidas recentes de fortalecimento do consumo das famílias, o intenso processo de desoneração fiscal de alguns produtos de consumo de massa, o estímulo ao crédito via redução dos juros, podem explicar o crescimento do consumo das famílias em quase cinco pontos percentuais entre 2004-2008 e 2011-2012, conforme artigo de Bráulio Borges (Folha de São Paulo, de 17/03/2013).

Nesse novo padrão de desenvolvimento, a política social foi direcionada não para fincar as bases do Estado Social com a finalidade da criação de uma sociedade de iguais protegida das forças do mercado, mas para operar politicas focalizadas de combate à desigualdade, da forma mais rápida e impactante no consumo das famílias.

Isso é o que chamamos de doença holandesa (sobrevalorizar uma atividade de forma a aniquilar outras) da política social, isto é, a acentuada ênfase estatal nas ações e estratégias de forte impacto no aumento do consumo das famílias, de maneira a subtrair recursos, vontade e apoio para a criação das bases de uma Seguridade Social universalista e solidária.

 Nesse modelo, o Estado Social carece de recursos, desmorona ou é ativamente desmantelado porque as fontes de lucro capitalista foram levadas da exploração da mão de obra fabril para a exploração dos consumidores. Os pobres precisam de dinheiro e de linhas de crédito para consumir e ter alguma utilidade na economia; e esses não são os tipos de serviços fornecidos pelo Estado Social, como afirma acertadamente Zigmund Bauman em obra recente, intitulada “Danos Colaterais”.

Não se trata aqui de ignorar a relevância do aumento do poder de consumo das famílias como expressão da redução das desigualdades de renda e da possibilidade de acesso de grupos sociais menos favorecidos a bens até então disponíveis para poucos. Trata-se, no entanto, de reconhecer que essa estratégia isoladamente não é suficiente. Na área social, a individualização dos riscos e da responsabilidade sobre a proteção – consequências do esvaziamento do Estado Social e da rarefação das políticas universais-, em médio e longo prazo, reitera padrões de estratificação e erode as possibilidades de construção de sociedades mais solidárias.

O debate sobre o novo-desenvolvimentismo está em construção, no plano teórico-acadêmico e político-governamental. A forma como a política social se articula às políticas econômicas representa uma questão crucial para a natureza de novos Estados desenvolvimentistas. O novo-desenvolvimentismo não pode se resumir apenas a uma visão “neoestruturalista” – no sentido do fortalecimento de segmentos da indústria, de grupos capitalistas nacionais, de promoção do dinamismo econômico –, atrelados a políticas de combate à pobreza e criação de novos mercados de consumo.  Essa é uma opção limitada, que tende a reproduzir problemas antigos, não dá conta das transformações no capitalismo e perpetua a fragmentação e as desigualdades na sociedade. 

Como adverte Peter Evans em sua produção recente, os novos Estados desenvolvimentistas deveriam conferir centralidade às políticas sociais de caráter universal – como educação e saúde – dada a sua importância não somente na perspectiva dos direitos sociais, mas também na geração de empregos qualificados e na construção de novas capacidades, cruciais na fase atual do capitalismo mundial, baseado nos setores de serviços e no peso das inovações tecnológicas. A construção desse modelo passa pela condução estatal das políticas, pelo limite às forças de mercado e por uma nova forma de “autonomia inserida” do Estado, que não se resume às relações com os grupos capitalistas, mas sim à permeabilidade a diversos grupos sociais, em um contexto democrático.    

Em que pesem as dificuldades relacionadas ao cenário do capitalismo global, na América Latina o Brasil teria uma posição privilegiada para conformar um novo modelo desenvolvimentista, que integrasse políticas econômicas e sociais em outra lógica, conferindo um lugar de destaque para as políticas universais. O país já é uma das maiores economias do mundo; uma democracia recente, porém estável; dispõe de instituições políticas relativamente sólidas; de uma população numerosa, com uma proporção ainda expressiva de jovens; de uma Constituição nacional que assegura direitos sociais amplos; de um desenho de sistema de saúde público e universal, singular entre as nações capitalistas da Região.

Quem dera aproveitássemos o momento para superar as nossas contradições históricas e promover mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento e no caráter da política social brasileira, conformando um novo Estado Social, com vistas à construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nesse projeto, o sentido do SUS, como expressão de uma política de saúde efetivamente universal, estaria claro para todos. 

* Professora do Departamento de Medicina Preventiva/Faculdade de Medicina/ Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: analuizaviana@usp.br.

** Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: cristiani@ensp.fiocruz.br.