sábado, 22 de junho de 2013

Capital estrangeiro em hospitais privados com fins lucrativos no Brasil: privatização, internacionalização e inequidade fiscal

Capital estrangeiro em hospitais privados com fins lucrativos no Brasil: privatização, internacionalização e inequidade fiscal
De Cleber Ferreira*

Estudo inédito realizado pela American Hospital Directory em 2010 forneceu dados importantes subsidiando a discussão sobre a permissão de capital estrangeiro em clínicas e hospitais brasileiros, conforme inciativa do Senado Federal através do Projeto de Lei 259/2009, discutido em Audiência Pública no Senado.
Alguns hospitais privados norte-americanos, participantes do Programa Medicare, com mais de 200 leitos, lucram 25% ou mais em cada conta paga. Esta margem de lucros é compatível com a obtida por gigantes da industria farmacêutica como a Pfiser, e bem superiores aquelas obtidas por empresas como a General Eletric. Alguns hospitais reportaram uma margem de lucro surpreendente de até 53%. Abaixo, o lucro operacional dos 10 hospitais mais lucrativos do mercado norte-americano.
Artigo publicado na Forbes.com (1) questiona se estes hospitais são realmente eficientes ou se são beneficiados pelo poder monopolista local para imporem seus preços aos seus clientes, concluindo que esta é uma discussão que os hospitais com fins lucrativos não querem travar com a sociedade. 15 dos 25 hospitais da listagem apresentada são hospitais privados com fins lucrativos.
A predominância de hospitais privados com fins lucrativos é uma questão fundamental na saúde: as contas hospitalares representam 33% do gasto total com a atenção à saúde, sendo superior aos gastos com médicos e demais profissionais, medicamentos ou qualquer outro item de despesa existente (1).
Com o domínio em mercados relevantes, os hospitais com fins lucrativos da rede própria de uma operadora de saúde submete seus clientes, entre eles as operadoras de saúde concorrentes, aos seus preços e termos.
A lucratividade dos hospitais está intimamente relacionada a existência de um mercado relevante protegido, com insuficiência de prestadores, com pouca ou nenhuma competição local, e na existência de um exuberante mercado consumidor de beneficiários de planos de saúde (1). E este é justamente o retrato do mercado brasileiro atual.
Estudo recente realizado pelo IPEA com dados da Receita Federal, demonstram que o gasto tributário em saúde, definido como o pagamento indireto da União através da renúncia fiscal proveniente da declaração do IRPF e IRPJ e das desonerações fiscais dirigidas à indústria farmacêutica (medicamentos) e aos hospitais filantrópicos chegou a 16 bilhões de Reais em 2011, equivalente a 22,5% da despesa pública federal em saúde (5).
No ano de 2006, essa equivalência alcançou nada menos que 30,5%. O percentual relativo de recursos públicos gastos exclusivamente com planos privados de saúde dentro do gasto tributário total entre 2003 e 2011 foi igual ou maior a 40%. Somente em 2001, atingiu quase 50%, envolvendo cerca de R$ 7,7 bilhões. Isto significa uma mudança no modelo da atenção à saúde adotado no Brasil. Segundo o pesquisador do IPEA Carlos Octávio Ocké-Reis, autor do Estudo (5):
“Apesar do fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) no Senado – patrocinado pela oposição ao governo federal em fins de 2007 – considerando que os gestores do SUS têm, repetidamente, enfatizado que esse sistema público se encontra sub-financiado, seria de se esperar que houvesse uma evolução mais favorável ao gasto público em saúde. Com vistas à preservação de seus preceitos constitucionais, o crescimento dos gastos tributários com planos (ou seja, a renúncia fiscal) deveria, pelo menos, ser monitorado pelo governo federal. Convém advertir que a tendência atual gera uma similaridade com a arquitetura do sistema privado de saúde estadunidense, reconhecido como caro e ineficiente, e que também se caracteriza pela presença de subsídios e benefícios aos empregadores”.
Com 450 mil leitos hospitalares no país, sendo apenas 36% deles exclusivamente públicos, a saúde suplementar brasileira expandiu sua carteira de beneficiários em 5 milhões de novos clientes nos últimos 5 anos. Estima-se a necessidade de 14 mil novos leitos somente para atender a demanda reprimida no setor privado (3).
Além do comprovado sub-financiamento do SUS, concomitante com o financiamento indireto de 50% dos gastos das pessoas físicas e jurídicas com planos de saúde através da renúncia fiscal, há de se considerar o papel do Estado na regulação do setor, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.
A regulação da ANS permite que as operadoras continuem vendendo planos privados de saúde mesmo diante da insuficiência da rede instalada no país que pudesse garantir os contratos vigentes, gerando uma crise sem precedentes no setor, estampada na mídia diariamente.
A ANS, conforme pronunciamento na Audiência Pública no Senado Federal, é a primeira a reconhecer que a quantidade de beneficiários de planos de saúde vem aumentando muito mais que o número de novos hospitais privados ou filantrópicos (3).
Os planos privados de saúde são produtos de utilização circunstancial, com pré-pagamento de serviços que deveriam estar disponíveis quando demandados pelos consumidores. A consequência da comercialização de um plano sem rede suficiente surge através do aumento das denúncias, das multas aplicadas, na judicialização crescente e na conseqüente utilização pelos consumidores da rede do SUS, todos comprovados através de estatísticas oficiais e de órgãos de defesa do consumidor.
Países como o Japão vedam a atividade lucrativa em hospitais. Gastando 8,5% de seu PIB em saúde, o Japão garante cobertura universal e serviços de qualidade para toda a população, com economia de 50% em relação aos gastos per capita realizados pelos Estados Unidos. Seus indicadores de saúde populacional, como a expectativa de vida e outros, são também melhores (5, 6). Outros exemplos, como o sistema de Saúde da Inglaterra, demonstram que é possível a construção de um sistema público universal e de qualidade.

Na Audiência Pública realizada na Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2013 acerca da venda da AMIL para o Grupo UNITEDHEALTH, incluindo pelo menos 22 unidades hospitalares, questionamentos foram realizados pelo Deputado Federal Eleuses Paiva, demonstrando a linha de temporal entre a aquisição de hospitais pela AMIL, a posterior aprovação da venda da AMIL para a UNITEDHEALTH, e a edição e alteração de normativos pelo órgão regulador em itens fundamentais para viabilizar o negócio (8). A Audiência Pública foi abruptamente interrompida ao arrepio do regimento interno da casa, impedindo a réplica e tréplica dos participantes (7).

Já a Audiência Pública realizada no Senado Federal para discutir o Projeto de Lei 259/2009, com vistas a autorizar o ingresso do capital estrangeiro em hospitais e clínicas brasileiras, é extemporânea pois, mesmo em plena vigência do artigo 23 da Lei 8080/90 e do § 3º do Artigo 199 da Constituição Federal (8), a internacionalização de Hospitais, Clínicas e Laboratórios brasileiros já são uma realidade diante da aprovação pela ANS da venda da AMIL para o Grupo UnitedHealth (3, 8).
A ANS aceitou aprovar a venda da AMIL com o argumento de que os mais de 22 hospitais vendidos para o Grupo UnitedHealth faziam parte de sua rede própria, e que seriam usados apenas para reduzir seus custos (9).
Entretanto, a mesma AMIL/UnitedHealth realizou posteriormente a compra de 6 Hospitais da HPP em Portugal, em março de 2013, por R$ 240 milhões, o que demonstra sua visão estratégica e global acerca da lucratividade da aquisição de hospitais com fins lucrativos (10). Em Portugal, a internacional AMIL é anunciada como "o grupo brasileiro de saúde Amil", mesmo após a sua venda para a UNITEDHEALTH em outubro de 2012 (10).
Adotando o modelo norte-americano de saúde no Brasil, independente das questões legais e constitucionais em discussão, não há como esperar resultados diferentes daqueles existentes na literatura: o modelo é caro, ineficiente e excludente. Significa que cerca de 50% da receita dos hospitais da AMIL/UnitedHealth poderão se transformar em lucro  para seus investidores internacionais, elevando a conta a ser paga pela população brasileira, ou em vantagem competitiva para machucar a concorrência nacional nos mercados relevantes que também dependem de sua necessária e estratégica rede hospitalar.
Esta não é uma discussão ideológica, e até o momento não tem sido sequer uma discussão técnica. A ausência de discussão sobre a legalidade da aprovação pela ANS da venda da AMIL para a UnitedHealth, em pleno Congresso Nacional, são evidências do poderio e eficiência do Lobby das empresas junto ao governo, impossibilitando questionamentos, sejam técnicos, legais, éticos ou republicanos. Trata-se de Censura aplicada em uma Audiência Pública realizada na casa do povo brasileiro (7).
Conforme conclui o texto do IPEA (5) acerca da renúncia fiscal praticada pelo União:

“O que precisa ser investigado de maneira minuciosa é um conjunto de evidências que, neste momento, estão apontando para a seguinte conclusão: a renúncia da arrecadação fiscal nesse campo induz o crescimento do mercado de planos de saúde, em detrimento do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e, por outro lado, gera uma situação de injustiça, ao favorecer os estratos superiores de renda e certas atividades econômicas lucrativas”.
Com este cenário, o texto constitucional vai aos poucos se transformando em letra morta: Saúde, direito de todos e dever do Estado. 

Referências:
(1) http://www.forbes.com/2010/08/30/profitable-hospitals-hca-healthcare-business-mayo-clinic.html
(2) http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=61530&tp=1
(3) http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/06/03/com-ou-sem-capital-estrangeiro-saude-precisa-de-mais-investimento-publico-defendem-debatedores
(4)http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=18431&catid=8&Itemid=6
(5) http://en.wikipedia.org/wiki/Health_care_system_in_Japan
(6)http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/80/Total_health_expenditure_per_capita%2C_US_Dollars_PPP.png
(7) http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/webcamara/videoArquivo?codSessao=44281
(8) http://www.assetans.org.br/redesocial/file/view/15423/a-aquisicao-da-amil-pela-united-health-e-a-ans
(9) http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/06/1291815-senado-abre-debate-sobre-permissao-de-capital-estrangeiro-em-hospitais.shtml
(10) http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=3082928
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Mestre e Doutor em Odontologia em Saúde Coletiva – UFF
Presidente da ASSETANS – Associação dos Servidores e demais Trabalhadores da ANS
e-mail: presidente@assetans.org.br